o projeto

Há aproximadamente dez anos, em pesquisa de recenseamento realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), no tocante que se referia ao campo religioso brasileiro, o Brasil surpreendeu-se com as informações de que o Rio Grande do Sul possuía índice elevado de indivíduos que se declararam adeptos as religiões afro-brasileiras. Maior surpresa ainda foi quando se percebeu que estávamos em posição à frente de estados como Rio de Janeiro (na segunda colocação), Bahia, Pernambuco e Maranhão. Em grande parte este espanto tem origens na auto-afirmação e na produção de uma auto-imagem pelo RS, que comumente exporta para outros estados brasileiros e também para países estrangeiros o fato de ser um estado branco, cristão, colonizado e habitado, em sua maioria, por imigrantes europeus, ofuscando e também excluindo índios e negros.

Este mesmo censo divulgou que os negros constituíam, na época, 12,6% do número total da população do estado, manifestando sua cultura, crenças e tradições não apenas no campo religioso - e especificamente das religiões afro-brasileiras praticadas no estado (batuque, umbanda, linha cruzada, nação) -, mas também em formas modernas de manifestações artísticas e culturais como o hip-hop, o funk e o pagode. Além disso, é importante lembrar, a cultura afro-brasileira se fez e ainda faz muito presente por aqui.

A cidade de Pelotas, um dos principais redutos negros do estado, teve por muito tempo o que se considerava o terceiro maior carnaval do país, com seus bonecos gigantes, cordões de bichos, blocos carnavalescos e escolas de sambas tradicionais. As próprias escolas de samba, tanto as de Pelotas como as de Porto Alegre, possuíam características bem particulares, como o uso de instrumentos de sopro e também do Sopapo, tambor genuinamente gaúcho em forma cônica e como pele percutida couro de cavalo. Na antiga Igreja do Rosário de Porto Alegre, negros se encontravam para brincar suas folgas, tocando suas marimbas e utilizando pernas-de-pau, no que chamavam candomblé.

Surgidas de antigas festas de coroação de reis negros, as congadas, presentes em boa parte do território nacional, por aqui também se estabeleceram e se ressignificaram, adquirindo características e enredos próprios, ao mesmo tempo em que parecem suspensas no tempo, com fortes traços ainda vivos de um passado colonial e de forte repressão. Maçambiques em Osório, Ensaios de Promessas em Mostardas e Quicumbis em Rio Pardo e Palmares do Sul estabelecendo uma possível rede em louvor a São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, com seus reis de Congo e rainhas Ginga, seus tambores e suas danças, dentro de um contexto religioso afro-católico.

Hoje aparentemente desconectos, é sabido que até meados da década de 1940 Maçambiques e Quicumbis se encontravam para uma mesma festa, em Osório, quando realizavam embaixadas e prestavam homenagens aos santos de suas devoções. Vindos cada um de localidades distintas, realizavam os festejos por aproximadamente sete dias. O pesquisador Dante de Laytano, já em 1945, constatou que dos dois grupos que se apresentavam apenas um se apresentou (maçambiques), encarnando, mais ou menos, o que seriam as características dos dois grupos. Desde então os grupos encontram-se isolados, sem contato e possivelmente também sem conhecimento das atividades realizadas pelo outro, assim como também os quicumbis de Rio Pardo.

O projeto “Buscando Coroa” intenciona este reencontro, aproveitando-se das possibilidades da tecnologia de médio custo e recursos da inclusão e acessibilidade digital, também propondo que os grupos se visitem, se conheçam e também revivam, na Igreja do Rosário da capital gaúcha, os encontros festivos dos negros de outros tempos.

JUSTIFICATIVA

O projeto “Buscando Coroa” nasce da necessidade do autor em estimular o encontro de grupos de cultura popular, para que estes se percebam e se sintam pertencentes em um mesmo contexto religioso, social, histórico e cultural. Porém, antes deste encontro, é necessário, primordialmente, que alguns vazios históricos sejam preenchidos, através da devolução de registros e também do acesso às informações colhidas para estes grupos e comunidades pesquisadas.

Este projeto tem principalmente para os integrantes mais jovens dos grupos pesquisados, importância em aproximá-los a um passado não vivido e talvez nunca escutado, também como em oportunizá-los a conhecer um pouco das origens e histórias do congado brasileiro, com maior destaque para as congadas gaúchas.

Atualmente, grande maioria dos integrantes dos Quicumbis de Rio Pardo e dos Ensaios de Promessa de Mostardas é composta por pessoas idosas, não sendo o caso dos Maçambiques de Osório, no qual os mais jovens aproveitam os intervalos das festas em louvor a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito para cantar e tocar músicas como funk e pagode.

Após trabalhos de pesquisas e registros de Dante de Laytano, Paixão Côrtes (folclorista e criador do Movimento Tradicionalista Gaúcho e dos Centros de Tradições Gaúchas) – estes com mais de cinqüenta anos -, alguns poucos estudos acadêmicos, dissertações de mestrados e teses de doutorados, pesquisas isoladas de músicos locais, este projeto não apenas “atualiza” as informações sobre estas manifestações, que também se reaproximam. É importante comentar não haver a necessidade de que esses grupos se comprometam em reavivar estes encontros tais quais foram no passado e de forma costumeira, o que poderia configurar na perda da espontaneidade dos processos culturais aqui pesquisados.

Neste momento histórico no qual em todo o território brasileiro se comenta e se estimula a preservação dos nossos patrimônios imateriais e diversas políticas públicas investem nos mestres de nossas culturas populares, e tendo conhecimento das características e dados da população negra gaúcha e sua cultura, “buscar coroas” vai de encontro com estas preocupações. E o contexto é sugestivo para que o projeto aconteça, principalmente pelo fato destes grupos permanecerem praticamente desconhecidos, inclusive para os próprios negros gaúchos, já que há uma defasagem de registros e também implicações que dificultam o acesso aos poucos existentes.

É claro que em muitos casos os próprios grupos procuram o isolamento e preferem ficar “intactos”, por isso afirmo nos objetivos que todo o material disponibilizado será avaliado pelos grupos e seus integrantes, incluindo a autorização legal para uso de imagens e registros. Há também a possibilidade de que eles mesmos venham a produzir material para vinculação no site, caso se interessem, se utilizando de equipamentos eletrônicos como máquina fotográfica, filmadora e gravador digital portátil de médio custo, que possuo, ou até mesmo em equipamentos que sejam seus, como celulares, câmeras fotográficas digitais, etc.

Porto Alegre e o Rio Grande do Sul já se mostram curiosos e realmente participativos em alguns aspectos da cultura afro-brasileira (Mestre Borel, 85, alabè mais antigo em atividade no Estado recentemente foi tema de documentário já lançado - FALECIDO EM 04/07/2011 -; o tambor sopapo é pesquisa recorrente, tendo inclusive Ponto de Cultura dedicado à sua pesquisa e preservação; as festas de Oxum, Iemanjá e Ogum possuem grande participação de pessoas, e não somente as ligadas às religiões afro-brasileiras; afoxé e maracatu - os dois também possíveis reminiscentes de antigas festas de coroação de reis - já se transformaram e são objetos de pesquisa, estudo e divulgação de grupos musicais da capital), porém as pesquisas relacionadas aos grupos sugeridos para o projeto ainda não ganharam a intensidade e atualização desejada e pretendida.

Com o progresso e o tempo, muitos dos registros orais se perdem e se ressignificam, migram e se fundem, configurando um processo orgânico e dinâmico. Valorizar as informações e os conhecimentos dos antigos é se preocupar com o futuro não somente dos indivíduos próximos e dos grupos aos quais fazem parte, mas com todas as relações e encontros sociais possíveis em nosso mundo atual.

Saber das origens do congado, como de toda nossa cultura popular, é conhecer sob outro ponto de vista a história de nosso país, pois, muito mais do que resquícios de festas de coroação de reis negros no período colonial brasileiro, o congado é hoje um misto de referências diversas, oriundas das ancestralidades e saberes de diferentes tipos que ajudaram na criação de nosso sentimento de pertencimento afetivo as nossas tradições.


projeto escrito e formatado em Maio/2010.