sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Conjunto Musical Os Botinhas


A amiga Luciana Conceição, através do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com o intento em obter o título de mestre em Desenvolvimento Rural, elaborou a dissertação “RELAÇÕES DE RECIPROCIDADE QUILOMBOLA: PEIXOTO DOS BOTINHAS E CANTÃO DAS LOMBAS – MUNICÍPIO DE VIAMÃO/RS. Nos conhecemos ano passado, quando em um simpósio sobre territórios quilombolas no Rio Grande do Sul - no qual eu não participava, apenas trabalhava em uma atividade paralela – Luciana apresentou trechos de sua dissertação e inevitavelmente falou sobre a antiga prática do quicumbi em um dos territórios vivenciados, estudado e analisado.
De longe escutava atento e curioso, quando esta sua citação me chamou a atenção. Em poucos dias já entrava em contato com ela para que pudesse saber um pouco mais sobre este fato até então inédito para mim. Era um dia quente de janeiro quando fomos até estes quilombos, para que eu pudesse conhecer, in loco, um pouco sobre essa antiga prática e tradição. Atualmente, o grupo de quicumbi do Peixoto dos Botinhas está completamente desativado, sendo algo presente apenas nas memórias dos mais velhos. Os mais jovens, contou Luciana, têm vergonha em dar continuidade a esta importante manifestação da identidade negra local, pois na escola ou em outros momentos de convívio, entre amigos e paqueras,  a gozação é provável, e o funk e pagode são muito melhores aceitos socialmente.
O quicumbi, no quilombo Peixoto dos Botinhas, era realizado pelo conjunto musical “Os Botinhas”, o que já lhe confere uma característica própria, pois era executado por um conjunto musical dedicado em animar bailes, tanto dos brancos quanto dos negros, diferentemente dos grupos de Osório e Morro Alto (maçambique, apenas religioso), e dos Ensaios de Promessa de Tavares e Mostardas. Quando praticavam o quicumbi, dançavam com sinos amarrados em suas pernas – algo semelhante aos guizos e maçacaias dos maçambiques, com a provável mesma intenção e representação – e também com facas. Danças com facas são presentes em várias tradições brasileiras, destacando o maculelê e a dança dos facões praticadas aqui mesmo no Rio Grande do Sul. No interior de São Paulo vários são os grupos que dançam o Moçambique com bastões e sinos nas pernas (paiás), o que traz, também e novamente, a idéia de uma rede e origens cada vez mais comum as congadas brasileiras. Estes bastões, ao longo das evoluções das danças dos moçambiques, são batidos uns contra os outros, representando duelos entre mouros e cristãos.
O conjunto musical d’Os Botinhas praticava também o Terno de Reis, o que nos evoca, outra vez, a dinâmica e versatilidade das congadas do sudeste brasileiro, nas quais é possível encontrar as congadas, (Congada, Moçambique), folia de reis, candombe, jongo. Por lá ouvi que os granjeiros, fazendeiros e estancieiros locais, apesar de possuírem seus próprios ternos de rei, preferiam chamar o terno dos Botinhas, pois este era muito mais bonito e os negros dançavam com muito mais graça e  desenvoltura.
A foto incluída por Luciana em seu trabalho é de uma validade incrível. As vestes d’Os Botinhas (ou as que usam na foto) em muito se assemelham com as dos maçambiques de Osório e quicumbis de Mostardas e Tavares. Não por menos, todos estes territórios estão intimamente ligados (a própria Bacopari, citada no texto), sendo todos eles partes de uma mesma freguesia em tempos de outrora, o que faz, até mesmo, com que relações de parentesco sejam estabelecidas. Curiosa é a presença da gaita (sanfona / acordeom) entre os integrantes do grupo. Agora, resta saber se esta gaita também era usado durante o quicumbi ou apenas para tirar reses e para os bailes.
Retirei o trecho que segue do trabalho de Luciana, sendo este referente ao conjunto musical Os Botinhas. Propositalmente, “começo” este recorte exatamente na parte onde a autora discorre sobre o salão e sua importância social, o que também, suponho, seja um importante signo das manifestações e culturas tradicionais praticadas no Rio Grande do Sul, devido a necessidade temporal de um local fechado para estas práticas.
Aproveitem!

***
(...)   Nesse sentido o salão, antecipa a associação quilombola, como cristalização de uma sociabilidade que configura a identidade étnica, como totalizável em uma expressão político-cultural. Suportado por essa sociabilidade festiva, o salão tem grande influência e importância na reconstrução e fortalecimento desses laços. Foi construído sob a intenção de que a comunidade pudesse realizar as festas “deles”. As fronteiras de um “nós” versus “eles” já se constituía sobre a dimensão festiva.

 Embora o conjunto musical “Os Botinhas” fosse convidado para animar também as festas dos granjeiros, mas as fronteiras entre o espaço de sociabilidade interno e externo à comunidade ficaram instituídas até pelo menos a década de 50. Conta-se na comunidade que os negros não podiam entrar em festas de brancos, e cronometram a década de 1950 como data ainda recente, vívida na memória coletiva. Essa proibição os motivou para a construção do Salão, pois tiveram um espaço para dançar, se divertir e poder jogar aos finais de semana. Segundo Nilson, atual responsável pelo Salão, assim como os negros sabiam o seu lugar, os brancos também e não freqüentavam as festas que eram realizadas no Salão Princesa Isabel. Mas com o passar do tempo e com as relações de empregados e patrões, que foram se criando com os granjeiros, fazendeiros e estancieiros essa relação foi se quebrando.

As pessoas dos Botinhas começaram a ser contratadas informalmente para trabalhar em granjas e fazendas, sem carteira assinada. Nas festas realizadas no salão Princesa Isabel os granjeiros mandavam funcionários não negros para observar o comportamento de seus funcionários quilombolas. E Mesmo estes funcionários freqüentando o local, segundo Nilson dono do salão, eles sempre souberam respeitar.

       A comunidade é muito festeira e é muito conhecida pelas boas festas que fazia. Numa visita que realizei em junho de 2009 na casa de uma das viúvas do conjunto musical “Os Botinhas”, foi possível analisar primeiramente a tristeza pela falta do principal músico e cantor. A viúva é chamada por todos de tia Jota e tem uma irmã gêmea. Tia Jota casou com o Bota que foi o precursor do conjunto musical o mesmo também tinha um irmão gêmeo que casou com a irmã da tia Jota, a Preta. O mais curioso de tudo é que são todos primos, nascidos e criados no Capão da Porteira e descentes da escrava Pelônia.
Na casa da tia Jota, a sala é repleta de lembranças das décadas de fama do conjunto musical, fotos dos ternos de reis, das apresentações de quicumbi, das coreografias com facas e dos trajes muito bem alinhados e sinos na barra das calças. Eles aprenderam a dançar em uma festa que foram no Bacopari[1], e de tempos em tempos o grupo do Bacopari participava de bailes nos Botinhas e os dois grupos dançavam.

Com freqüência o assunto em campo eram as festas. Num desses dias, enquanto Seleza fazia a janta, ficamos conversando até tarde sobre os bailes da Dona Joana. Dona Joana é avó materna de “criação” da Tia Chica. Joana gostava muito de fazer bailes e tinha uma casa para morar e outra só pra fazer bailes. A casa de bailes era de chão batido e quem ajudou a construir foram às mulheres da comunidade. Como a casa era de chão batido levantava muita poeira quando o baile começava, mas isso não era empecilho para as pessoas permanecerem dançando ao som do gaiteiro Velúcio, pois o chão era borrifado com água, e o baile seguia.

Já o Terno de reis, Chica não só acompanhava a todas as cerimônias, com seu ex marido que era mestre, como também trabalhava nos preparativos da alimentação "...eu fazia sopa de osso e de guisado". Chica relata que os brancos também participavam das cerimônias religiosas no Cantão, porém os Botinhas não, pois eles tinha o seu próprio grupo de Terno de Reis. Só havia interação entre os ternos quando havia necessidade de ajuda para preparar as refeições que eram distribuídas.

Sobre a esta atuação entre os Ternos de Reis Tia Chica comenta:

 "a irmã da minha avó casou com Estevão que era botinha e foi morar lá, mas quase nunca a gente visitava ela e ela também foi deixando de visitar a gente. O meu marido ficou doente e foi deixando de lado o Terno, aí quando ele morreu acabou tudo mesmo. E a vó eu só fui ver quando ela morreu."  (FRANCISCA – Cantão das Lombas)

     O terno de reis tem grande semelhança com o que era realizado na mesma época de 60 no quilombo da Anastácia[2]. A única diferença é que ao invés de uma dupla cantando e tocando instrumentos com melodias católicas, era o conjunto musical dos Botinhas constituído por aproximadamente 15 pessoas é que comandava as celebrações. E ao término de cada cantoria pelas casas que passavam eram oferecidos café, bolo, cucas, lingüiça e diversas guloseimas. Após passarem em todas as casas da comunidade quilombola a festa começava no Salão Princesa Isabel.

Tia Jota se emociona ao relembrar dos tempos em que os Botinhas cantavam e dançavam. Tempo esse que se foi, mas as lembranças ficaram e as amizades não foram esquecidas.  Neste dia ela fez questão de chamar as filhas e netos para ouvirem o que ela tinha pra contar e fazia questão de dizer que “os verdadeiros Botas” são a família dela. Pois o Beco onde moram leva o nome de Botinhas por conta do conjunto musical que foi criado pelo seu esposo. E aos poucos a casa da Tia Jota foi enchendo de gente, que faltaram até cadeiras. A grande maioria eram os adolescentes, com sede de saber sobre a história do conjunto que originou o beco onde moram.

Figura 4 -  Conjunto “Os Botinhas”  terno de reis. Fonte: (Acervo da associação quilombola Peixoto dos Botinhas)

Só pelo fato do resgate histórico, oral e fotográfico das origens do conjunto musical e o interesse dos mais novos, a todo momento as irmãs Jota e Preta colocavam as crianças no comprometimento de levar a diante as origens dos Botinhas e quem sabe criar um novo grupo. Ao mesmo tempo que se queixavam que os jovens não querem mais saber de nada. Tia Jota dizia: “mas seria um sonho ver o conjunto constituído novamente”.
 
         Os vínculos que foram estreitados pelas redes de parentesco encontram nos bailes um espaço de exercício de sociabilidade, com representações coletivas que atribuem significados e reconhecimento. E faz com que a reconstrução do passado, ou seja, o rememorar os bailes, as perdas, os conflitos, evoca um leque de possibilidades de interpretações dessas marcas. Dessa forma se faz necessário destacar o papel que esses eventos festivos consagram na construção de alteridade desse espaço:

...são as grandes festividades na comunidade que inscrevem a memória coletiva nos corpos. No ritual festivo, tanto nos profanos como nos religiosos, a cadência ritmada dos corpos compassa a liberdade de se possuir um território para percorrer, ocupar, dançar (...) É por essa história incorporada através dos rituais festivos que a unidade da comunidade se faz território. (GOMES DOS ANJOS & ALMEIDA, 2002/2003, p.56)

        Na realização de eventos, como os bailes, eles revezavam com a comunidade Cantão das Lombas, que foi a pioneira em realização de festas. Que são lembradas até hoje como as festas da “dona Joana”. Esse revezamento se dava da seguinte forma: Peixoto dos Botinhas quando realizava as festas no salão, providenciava o conjunto musical, bebida e alimentação (essa alimentação variava, as vezes serviam um grande café com leite, bolos, pães e cucas ou churrasco, galeto, sopão, mocotó) e a comunidade do Cantão era convidada, então não precisavam pagar nada nem contribuir. E dessa forma quando as festas eram realizadas no Cantão das Lombas era recíproco, ou seja, os convidados eram convidados e não precisavam contribuir com bebidas e alimentos, mas o conjunto musical “Os Botinhas” sempre tocava uma ou duas músicas para retribuir o convite. Assim essas festividades trazem elementos de um cotidiano passado que fez parte de um território, fortaleceu os laços de parentesco e está sendo resgatado novamente. (...)


[1] A localidade do Bacopari faz parte do território quilombola de Limoeiro em Palmares do Sul.
[2] O quilombo da Anastácia foi o primeiro a se auto declarar enquanto comunidade remanescente de quilombo em Viamão/RS, está localizado no bairro Estância Grande.

***
por Lucas Luz para FÉsta Produções & Pesquisas em Culturas Populares e Tradicionais.
Foram respeitados a grafia e os temros originais do autor.
 

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Ensaio de Promessa - por Marisa Guedes, historiadora


Mais um dos tão poucos materiais sobre as congadas gaúchas, segue texto sobre o Ensaio de Promessa do município de Mostardas. Escrito pela historiadora Marisa Guedes, o material está, originalmente, disponível em seu blog, dedicado exclusivamente ao município de Mostardas e sua cultura e tradições.

***
Ensaio de Promessa no Município de Mostardas
Marisa Oliveira Guedes
Mostardas 2006



Aos homens e mulheres negras que construíram esta terra.

Apresentação
 


Ao chegar no município de Mostardas, justamente no ano do Centenário da Abolição em 1988, deparei-me com uma das manifestações mais ricas do sentimento religioso afro-brasileiro no litoral do Rio Grande do Sul, o Ensaio de Promessa.

A origem e significado da palavra Ensaio perdeu-se no tempo e na memória. Contudo o Ensaio de Promessa que consiste em pagamento de promessas feitas por pessoas devotas à Nossa Senhora do Rosário, não importando a cor ou classe social e realizado pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Homens Pretos de Mostardas, é muito similar as congadas realizadas no resto do Brasil.

Trabalhando na Fundação Casa da Cultura de Mostardas, tive a oportunidade de acompanhar estudar estes descendentes das Irmandades de Homens Pretos ou irmandades do Rosário de Mostardas, desde os tempos da escravidão. Desta forma as Irmandades do Rosário que se manifestam com o Ensaio de Promessa na nossa região são os grupos das localidades de Teixeiras, do Rincão do Cristóvão Pereira e Casca no município de Mostardas e uma Irmandade no município de Tavares.

Neste trabalho estarei abordando a origem da devoção ao Rosário, das Irmandades do Rosário ao redor do mundo e as manifestações de Ensaio de Promessa em Mostardas.


Origem da Devoção ao Rosário


A devoção à Nossa Senhora do Rosário veio para o Brasil com os portugueses e seus escravos em 1500. Contudo ela é bem anterior a sua chegada nas terras de “além mar”.


No século IV um eremita cristão chamado Paulo rezava 300 vezes o Pai-Nosso contando 300 pedrinhas, no deserto ao norte da África. Em 496 quando o cristianismo chega aos francos, o rei Clóvis é batizado e com ele os nobres e o povo. Da mesma forma que os bantos do Congo, da Guiné e da Angola, na África.

Nos séculos XII e XIII passa a ser costume entre os confrades rezar as orações contando pedrinhas. Segundo uma lenda, Nossa Senhora teria ensinado a oração do rosário a São Domingos de Gusmão (1170–1221). Nos séculos seguintes manteve-se a oração do rosário e no século XV, os frades dominicanos introduziram e divulgaram a devoção do rosário de Maria e Irmandades de Nossa Senhora do Rosário .


As Irmandades do Rosário ao redor do mundo


As Irmandades do Rosário que ficaram conhecidas por Irmandades de Homens Pretos têm sua fundação mais antiga na Alemanha, na cidade de Düsseldorf, com o nome de Irmandade das Alegrias de Nossa Senhora, para Irmãos e Irmãs do Rosário (brancos), em 1409, e em 1481 já contava com cem mil membros.


Para entendermos como esta passou a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Homens Pretos é importante conhecermos a história do cristianismo na Guiné. Quando em 1444 realizou-se a primeira venda pública de escravos em Lagos (Algave), na presença do Infante D. Henrique, deu-se o impulso que faltava para o tráfico de escravos da Guiné e do Cabo Verde.

Nos anos seguintes a exploração continuava e, em 1452, com a aprovação do Papa Nicolau V, quando escreveu ao Rei:

[...] nós lhe outorgamos pelos presentes documentos, com nossa autoridade apostólica plena e livre permissão de invadir, capturar e subjugar os sarracenos e pagãos e qualquer outro incrédulo ou inimigo de Cristo, onde quer que seja, como também seus reinos, ducados, condados, principados e outras propriedades e reduzir essas pessoas à escravidão perpétua, [...]

Consolidou-se a prática da escravidão de negros da África.

Com o batismo do rei do Congo, em Mbanza, na África em 1491, este se recusava a entregar como escravos, homens livres e só aceitava como escravos os capturados na guerra. Opôs-se também ao comércio dos cristãos.

Apenas quatro anos antes da chegada dos portugueses no Brasil é fundada a primeira Irmandade do Rosário dos Escravos em Lisboa, foi em 14/07/1496, com a Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos . O alvará concedia-lhes o direito de recolher esmolas nas caravelas que iam para a Mina e os rios da Guiné. Uma Igreja do Rosário é construída por volta de 1500 na Ilha de Santiago, na cidade Velha, no Cabo Verde. E em 1526 é fundada a primeira Irmandade de N. Sra. Do Rosário na África, na Ilha de São Tomé.

No Brasil a primeira Irmandade do Rosário dos Pretos que se tem notícia foi a de 1552 em Goiana (PE), onde muitos escravos eram de Guiné.

Quase cem anos depois as Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos proliferam no Brasil: Em 1639 na cidade do Rio e Janeiro(RJ); Em 1674 em Recife(PE); Em 1682, Belém(PA); Em 1686 em Salvador(BA); Em 1708 em São João Del Rei(MG), em 1713 em Cachoeira do Campo(MG), em 1713 em Sabará(MG), em1715 em Ouro Preto(MG), em 1728 em Serra (MG) e 1782 em Paracatu(MG); Em 1711 em São Paulo(SP); Em 1771 em Cairo (RN) e 1754 em Viamão(RS), 1773 em Mostardas (RS) e 1774 em Rio Pardo(RS).

Todas estas Irmandades mantém ainda hoje sua devoção à Nossa Senhora do Rosário com seus festejos.

Irmandade do Rosário de Mostardas
 


No contexto da história do Rio Grande do Sul, o município de Mostardas desempenhou papel importante como sendo caminho para a Colônia do Sacramento, fundada em 1680. O primeiro assentamento português na área foi por volta de 1737 quando da construção do Forte Jesus – Maria – José em Rio Grande. Com os militares vieram seus escravos.

Em 1742 foi criada a Guarda de Mostardas e a Fazenda Real do Bojurú para criação de mulas para abastecer as tropas imperiais. A mão de obra escrava oriunda de São Paulo, Minas Gerais e Laguna foram utilizadas em grande escala no município e região.

Com a chegada dos casais açorianos foi criada em 1763 a Freguesia São Luis de Mostardas. Dez anos depois a Irmandade do Rosário dos Homens Pretos já existia no Município, mas somente em 12 de julho de 1804 os irmãos pedem confirmação de compromisso a Dom João VI de Portugal.

O compromisso, aprovado pela Igreja e pelo Estado era uma espécie de estatuto interno que regia as irmandades. Era composto por uma série de artigos que definiam suas obrigações, o perfil dos associados e os direitos e deveres destes. Constava também a obrigação de mandar rezar sete missas pelas almas de cada irmão falecido pertencente à irmandade.

Existia muita tensão entre os representantes Eclesiásticos e as Irmandades Negras. Segundo Alisson Eugênio (2002), que pesquisou as Irmandades Mineiras do século XVIII, o Clero advertia constantemente as irmandades pela desobediência em não cumprir a contento as obrigações de rezar missas às almas dos irmãos falecidos, pois o recurso era utilizado para realização de festas em homenagem a Nossa Senhora. Alem disto, as festas consumiam recursos excessivos das associações na decoração da capela, músicos e foguetório entre outros.

As Irmandades do Rosário que se manifestam desde os tempos da escravidão com o Ensaio de Promessa na nossa região são os grupos das localidades de Teixeiras, do Rincão do Cristóvão Pereira e Casca no município de Mostardas e uma Irmandade no município de Tavares.

Atualmente as irmandades que realizam o Ensaio em Mostardas são os grupos de Teixeiras gerenciados pelo senhor Orlando Cardoso Duarte e do Rincão do Cristóvão Pereira pelo senhor Domingos Francelino de Souza(foto 1). O grupo da localidade de Casca não se realiza mais os Ensaios porque seu gerente faleceu e não deixou ninguém no seu lugar.

Na década de 1960 encontramos referência no Livro Tombo da Igreja de Mostardas (p. 6) sobre a atuação da Irmandade de “morenos”, quando o Padre Simão Moser, que dirigiu a Paróquia entre 1951 a 1982 havia proibido as manifestações de Ensaio de Promessa. Segundo ele havia suspendido a Festa de Nossa Senhora do Rosário “devido aos abusos que haviam se introduzido, culminando com excessos de beber”. A festa de 1963 só foi autorizada com as seguintes condições: “1 - O responsável pela festa seria o Padre Vigário, o festeiro só poderia organizá-la de acordo com tudo e por tudo com o Padre. Os tradicionais Ensaios não seriam permitidos devido aos grandes abusos que se deram lugar. A promessa do ensaio se substituía pela promessa de uma Santa Missa. 2 - Os donativos arrecadados, descontada a despesa módica da banda e jaquetas, seriam entregues ao Vigário ou comissão de obras da Igreja. 3 – A festa seria celebrada dentro do mês de outubro” (p.6).

A partir do ano de 1982 quando o Padre Simão faleceu, foram retomados os Ensaios de Promessa com as antigas tradições.

A Irmandade era formada pelos dançantes, em torno de quatorze a dezoito homens e pelo Gerente, que é o líder do grupo. É ele quem combina com a pessoa que fez a promessa, chamado dono da promessa, a data para a realização do evento, normalmente de sábado para domingo. Seus participantes, todos homens negros e membros da Irmandade, não recebem remuneração, realizam o Ensaio por devoção a Nossa Senhora. O Gerente tradicionalmente o mais velho, escolhe seu sucessor e o treina para comandar o grupo após sua morte.

A promessa não tem tempo determinado para ser paga, segundo seu Domingos, quando a promessa é urgente é paga mais rápido, como podemos comprovar pelo relato da senhora Aventina Teixeira de Souza, nascida em 1914, esposa de seu Domingos Francelino de Souza:

Quando tinha oito anos, em 1922, aconteceu um grande incêndio na chácara do vizinho dos meus pais. Toda chácara foi perdida, plantação e galpões. Quando o fogo estava aproximadamente a três metros da casa, o dono ajoelhou-se diante do fogo e pediu a Nossa Senhora do Rosário que salvasse a mesma e que em pagamento realizaria um Ensaio em oito dias. O fogo cessou e a casa não foi queimada. Após oito dias foi realizado o Ensaio de Promessa.

Em outros casos como da senhora Hilda Chaves da Silva, hoje com noventa e dois anos, a promessa foi paga quarenta anos depois. Por volta de 1960 nasceram as filhas gêmeas de dona Hilda, a Maria Francisca e Maria Conceição. Quando Maria Francisca tinha cinco anos estava fraca e muito doente. Seu marido fez a promessa de que pagaria cinco Ensaios a Nossa Senhora do Rosário e a menina se salvou. Tinham sido pagos quatro ensaios até o ano de 2000 e em 2004, trinta e nove anos depois, dona Hilda, viúva, e acompanhada das filhas gêmeas, do filho Nadir e seus netos Gilmar, Carlos e Marcelo, paga a promessa, completando o quinto Ensaio, com a satisfação destes fazerem parte da Irmandade do Rosário. Quando o dono da promessa morre antes de cumprir o prometido algum membro da família tem o dever de pagar a promessa.

A Irmandade gerenciada por seu Domingos, que dançou nesta ocasião, era formada por homens com idades entre 58 anos e 15 anos. A média de idade era na sua maioria entre 50 e 58 anos.


Ensaio de Promessa

 
No local onde vai ser paga a promessa, é montado um altar contendo várias imagens de santos de devoção do dono da promessa, duas folhas de palma, (foto 2) normalmente costuradas em um lençol fixado na parede, velas e quadros da santa. Na mesa é utilizada uma toalha branca de renda e vasos com flores. Em lugar de destaque uma caixa de esmolas com a imagem da Nossa Senhora, que é trazida em procissão pelo dono da promessa do quintal da casa até o altar. O altar fica no cômodo maior da casa para que todos possam assistir ao Ensaio.


Outra forma de arrumar o altar, com Santos (foto 3) e fotos da família dona da promessa. A caixa com imagem da Nossa Senhora do Rosário tem lugar de destaque. 

Seu Domingos relata que antigamente muito “povo” assistia aos Ensaios. Hoje, entretanto fica mais restrito à família (foto 4). 

As danças executadas durante o Ensaio são embaixadas, a de rítimo mais lento é chamada de marcha (foto 5) e a mais ligeira, fogo. Através da dança e entoação de cânticos a promessa é paga. São os mais velhos que ensinam os ritmos e a seqüência dos cânticos aos irmãos mais novos (foto 6). Não há treinamento fora do Ensaio, tudo é aprendido na hora do pagamento da promessa. As orações são as mesmas do tempo dos escravos e são passadas de geração a geração. Só é considerada promessa paga se forem entoados os cânticos de entrada, da meia noite e de despedida. O gerente tem total controle sobre os irmãos, e estes o atendem em todos os momentos, mesmo sobre comportamentos indesejados. Se necessário ele tem autoridade para retirar da casa um membro do grupo que não esteja se comportando adequadamente.

Antigamente, as vestimentas eram brancas, composta de calça, camisa, avental ou saiote colorido por cima da calça e gorro, também chamado capacete, enfeitado com fitas coloridas. Hoje, no grupo do Rincão do Cristóvão Pereira, cujo gerente é seu Domingos, cada um se veste de acordo com sua vontade, normalmente calça escura e camisa branca e sobre a cabeça um gorro com fitas. Já o grupo do senhor Orlando, mantém a tradição e todos usam roupas brancas. O avental não faz mais parte da vestimenta desde a década de 20.

O papel das mulheres no ritual é cuidar da preparação da comida, receber os convidados, rezar o terço enquanto os dançantes descansam, organizar o altar e confeccionar as roupas.

Ao dono da promessa cabe o provimento da alimentação aos participantes da irmandade e aos convidados.

O Ensaio realiza-se da seguinte forma: no dia marcado, no início da noite, os dançantes em número de seis a oito pares, reúnem-se e vão entoando orações até a casa do dono da promessa ou ao lugar escolhido por este. As danças acontecem do pôr do sol ao amanhecer, normalmente das 18 às 6horas, pois, segundo a tradição oral, os negros não tinham autorização para dançar durante o dia.

Na frente, do cortejo vai um dos homens com um tambor (foto 7) e outro com um pandeiro. O gerente leva nas mãos os guias ou reco-recos, espécie de pauzinhos de bambu que são batidos um contra o outro produzindo um som típico. Assim, dançando e tocando chegam à casa do dono da promessa.

O dono da casa, que espera os dançantes junto com a família (foto 8), tem nas mãos uma vela acesa. Nesta hora sua esposa tem permissão de participar da procissão, levando a caixa de esmolas nas mãos. Os dançantes são convidados a entrar, o que fazem entoando canções, batendo tambor e tocando pandeiro e guias. A Santa, que é levada por uma das mulheres, é então colocada em um altar armado em uma mesa em lugar de destaque. O dono da promessa convida as pessoas para a reza, as crianças participam das orações (foto 9).

Pela meia noite é hora do terço, quando os membros do grupo aproveitam para descansar e jantar. O terço hoje é rezado pelas mulheres, mas antigamente quem rezava era o gerente da Irmandade.

Esta oração e as danças continuam a noite toda (foto 10) e, a cada hora e meia descansam por quinze minutos. Normalmente, participam ativamente de cinco a seis pares de irmãos, dois pares ficam descansando e revezam-se a cada intervalo.

Pouco antes do amanhecer é servido café. No nascer do dia, sempre cantando e dançando, saúdam a estrela D’alva e encerra-se o Ensaio. O gerente pergunta ao dono da casa se a promessa foi paga a contento. Somente com a afirmativa deste é considerada paga, caso contrário a Irmandade deve repetir o Ensaio. Cansadíssimos, os dançantes se despedem fazendo o mesmo trajeto da entrada (foto 11).

Quando o Ensaio termina todos os membros da Irmandade em fila beijam a imagem da santa pedindo proteção e bênçãos, tocando com a imagem, que está fixada na caixa de esmolas, na testa por três vezes. Neste momento é recolhida a esmola para a Santa (foto 12). 

A prática do Ensaio de Promessa no município de Mostardas caiu em desuso a partir de 1970 aproximadamente.

Um dos motivos foi o custo que se tornou proibitivo numa época de poucos recursos. O pagamento de uma promessa envolve o deslocamento e alimentação do grupo de dançantes e convidados, em torno de mais ou menos cem pessoas, o que se torna muito oneroso.

Em Mostardas, a prática do Ensaio estava tradicionalmente vinculada às famílias negras rurais e comunidades descendentes de escravos onde as famílias mantinham sua comunidade fechada. Estas comunidades tinham como característica a agricultura tradicional com o emprego de muitos filhos na lavoura. Outra característica era a proximidade dos parentes e familiares com as mesmas tradições e costumes.

Com o deslocamento dos moradores das comunidades rurais para a sede do município, em busca de melhores condições de vida, perdeu-se o contato entre os membros das irmandades. A agricultura tradicional familiar com muitos filhos trabalhando na lavoura e com parentes nas proximidades, era fator de agregação por laços de atividades, família e tradições em comum.

Com a desvalorização da atividade agrícola, houve uma dispersão dos membros familiares, redução do número de filhos frente a realidade econômica e desvinculação dos costumes antigos.

O Ensaio que, por certo tempo, esteve em desuso por falta de interesse e novos participantes, está sendo mais valorizado atualmente.

Em 1989, a Fundação Casa da Cultura de Mostardas forneceu aos dançantes indumentárias adequadas e pessoas mais jovens passaram a valorizar esta atividade.

O reconhecimento por parte do Poder Público, das Comunidades Remanescentes de Quilombos de Casca e Teixeiras no município de Mostardas em 2001 trouxe um novo impulso à manutenção da cultura e resgate da religiosidade tradicional dos escravos.

Este fator foi determinante para a valorização dos Remanescentes de Quilombos no sentido de preservar suas raízes, bem como ponto de referência para pesquisadores de Universidades sobre o assunto. 

Bibliografia

ACOMPANHAMENTO e gravação em fitas VHS dos Ensaios de Promessa realizados em Mostardas nos dias 31/01/2004, 22/06/2005 e 14/07/2006.

ARQUIVO Histórico do Rio Grande do Sul. Anais. Porto Alegre: Corag. v.1, 1977.
BALENO, Ilídio. Subsídios para a História do Cabo Verde: as necessidades das fontes locais através dos vestígios materiais, 1989.

BERWANGER, Ana Regina. Catálogo de documentos manuscritos avulsos referentes à capitania do Rio Grande do Sul existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa. Porto Alegre: IFCH/UFRGS/CORAG, 2001.

BUNSE, Heinrich Adam Wilheim. São Jose do Norte: aspectos lingüístico-etnográficos do antigo município. 2.ed. Porto Alegre, Mercado Aberto/Instituto Estadual do Livro, 1981.

CONFIRMAÇÕES Gerais. Lisboa: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Livro 2 1496.


CORD, Marcelo Mac. Identidades Étnicas, Irmandade do Rosário e Rei do Congo: sociabilidades cotidianas recifenses – século XIX. Artigos

EUGÊNIO, Alisson. Tensões entre os Visitadores Eclesiásticos e as Irmandades Negras no Século XVIII Mineiro. Revista Brasileira de História.Vol. 22 nº43. São Paulo. 2002

FORTES, João Borges. O brigadeiro José da Silva Paes e a fundação do Rio Grande. 2. ed. Porto Alegre: Erus/Companhia União de Seguros Gerais. 1980.

_________ . Os casais açorianos: presença lusa na formação do Rio Grande do Sul. 3. ed. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1999.

_________ . Rio Grande de São Pedro: Povoamento e conquista. 2. ed. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2001.

LIVRO Tombo da Paróquia de Mostardas. Mostardas: Arquivo da Paróquia São Luis, 1951.

MUACA, Eduardo A. Breve História da Evangelização de Angola: 1491-1991. Lisboa: Secretaria Nacional das Comemorações dos 5 séculos, 1991.

POEL, Frei Francisco Van Der. Congado: origens e identidade. < www.religiosidadepopular.uaivip.com.br/congadoorigem.htm> acesso em jun.2006.

PRINCÍPIOS da Igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1952.

RUBERT, Arlindo, História da Igreja no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDIPUCR, 1994.

SOUZA, Aventina Teixeira. Entrevista concedida na cidade de Mostardas, RS, dia 22/11/2005.

SOUZA, Domingos Francelino de. Entrevista concedida na cidade de Mostardas, dia 22/11/2005.

por Lucas Luz para FÉsta Produções & Pesquisas em Culturas Populares e Tradicionais.
Foram respeitados a grafia e os temros originais do texto. 
Fotos não localizadas.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

A Rainha Ginga - Memória e identidade maçambiqueira

Excelente texto, não por menos encontrado em uma data tão complexa quanto este dia de hoje, 20 de Setembro. Depois de anos vivênciando e acompanhando os maçambiques, eis que este é o mais esclarecedor de todos os registros com os quais tive contato e que também já me propus em escrever.

Uma visão tão coesa, detalhista e íntima como essa só poderia ser escrita por alguém do próprio grupo, o que neste texto acontece. Escrito por Francisca Dias, presidente da Associação Religiosa e Cultural Maçambique de Osório e filha da Rainha Ginga Severina Dias, o texto é uma ótima recordação sobre as origens do Maçambique e as trajetórias de suas rainhas gingas. Encontrado em Cantadores do Litoral.

***

A RAINHA GINGA - MEMÓRIA E IDENTIDADE MAÇAMBIQUEIRA
Artigo escrito para publicação no Livro "Raízes de Capão da Canoa".

Francisca Dias
Coordenadora do Grupo Religioso e Cultural
Maçambique de Osório

O Maçambique é o maior elo de ligação fundamental com a vida da comunidade negra, situada nos municípios de Osório, Maquiné, Santo Antônio da Patrulha, Palmares do Sul, Terra de Areia e adjacências, no Litoral Norte, no Estado do Rio Grande do Sul. Com o ritual religioso e afro-católico, quando são expressas as devoções aos santos católicos, a comunidade negra de Morro Alto participa das festas que exaltam, agradecem e celebram a fé em torno de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito.

Dentre as personagens desta cerimônia religiosa, sobretudo, da dimensão que incorpora as heranças dos escravos africanos e brasileiros, a principal é a Rainha Ginga. Por meio das ações, dos pensamentos e da memória advinda dos ancestrais africanos, as rainhas gingas perpetuaram a cultura, os valores e a identidade da comunidade negra de Osório. Os reis e as rainhas africanos, muitas vezes, eram também sacerdotes que não somente foram reverenciados como intermediários entre os homens, mas como deuses eles mesmos. Os reis representam a renovação dos valores comunitários da história de um povo, desde os tempos imemoriais e históricos.

Nzinga Mbandi Ngola, rainha de Matamba e Angola nos séculos XVI-XVII (1587-1663), foi uma das mulheres e heroínas africanas cuja memória tem desafiado o processo diluidor da amnésia, dando origem a um imaginário cultural na diáspora tal como no folclore brasileiro com o nome de Ginga. A rainha Nzinga Mbandi, filha do rei de Angola, formou um pequeno exército, a fim de combater e conquistar o reino de seu irmão Ngola Mbandi, que havia matado seu filho por interesse de terras e sucessão. A rainha conseguiu reunir várias tribos e fez acordo com os portugueses, em troca do seu apoio, convertendo-se, estrategicamente, à religião católica, quando recebeu o nome de Ana de Souza. Mais tarde, renegou a fé cristã, embora tenha contribuindo para a difusão e a afirmação do catolicismo na África. Não obstante, expulsou aos portugueses invasores de suas terras.

A história desta soberana negra chegou ao Brasil, sobretudo por meio das embaixadas nas Congadas, dos cortejos e dos bailados do Maçambique. Em Osório, as diversas rainhas Gingas com o pálio real de cor azul; com as sucessivas coroas que acrescentavam aos seus corpos físicos uma capacidade transcendental de unificar uma comunidade étnico-cultural afro-brasileira para além das suas dimensões geográfico-territorial. Em verdade, fica enfatizado o caráter político, uma vez que elas agregam um valor emocional cuja unidade é a pátria, as tribos e as nações africanas. A coroa que elas portam está profundamente associada à identidade de grupo da comunidade negra, consolidada pela rede de parentesco consangüíneo e ritual.

A primeira Rainha Ginga, da qual se obteve algum registro, foi dona Maria Lima, que era chamada, popularmente, de "dona Maria Gorda". Ela era parteira, tinha uma personalidade forte e teria reinado entre 1922 e 1935. Sua sucessora foi Maria Vergilina da qual nada foi referido pelos mais velhos, além do nome, e que teria reinado entre 1935 e 1950.

A rainha seguinte, por sucessão, foi Maria Tereza Joaquina de Oliveira que reinou , entre 1950 e 1978. De acordo com muitos dos antigos maçambiqueiros, Maria Tereza era uma figura altiva, imponente e carismática. O maior orgulho da rainha Ginga Maria Teresa Joaquina de Oliveira era o fato de ter sido coroada pelo cardeal Dom Vicente Scherer. Ela afirmou o seguinte: "O Dom Vicente Scherer me disse, 'tu é quem manda, tu que governa e eles não podem fazer nada sem tu. Tu és quem ficou no lugar da africana. Eles botaram a guerra com a africana porque a festa da africana era mais bonita do que as dos brancos. Os brancos faziam a festa, negro não fazia. Mas a africana tinha Nossa Senhora do Rosário em casa [...] então a rainha guerreou e venceu a guerra como tu (Maria Tereza) venceste esta coroa hoje'". Ao final das sábias palavras, o nobre arcebispo colocou a coroa na cabeça de Maria Tereza. Apesar da idade avançada, demonstrava muita lucidez e grande capacidade de julgamento. No passado, no âmbito da comunidade negra de Morro Alto, as rainhas tinham o poder delegado pelos integrantes de resolver todos os conflitos, podendo até mesmo ordenar a prisão daquele que tivesse sido responsabilizado por alguma transgressão. Ela indicava os festeiros para a festa de Nossa Senhora do Rosário. Esta rainha veio a falecer com 111 anos.

Tomásia Sérgio de Oliveira, natural de Maquiné, herdou o cargo de sua mãe, Maria Tereza. Esta rainha tinha um temperamento muito diferente de sua antecessora, uma vez que era tímida e simples. No entanto, ao desfilar com o manto azul e sua coroa prateada, desfilava silenciosa e majestosa, ao lado do rei, e sempre acompanhada de sua pajem. Ela reinou entre 1978 e 1992. Quando a rainha Ginga Maria Tereza faleceu, em 1992, suas filhas abriram mão do cargo, o qual caberia a qualquer uma delas na linha sucessória. Dona Maria de Oliveira, uma das suas filhas, em 1986, já havia declarado o seguinte: "Isso é coisa dos antigos, dos mais velhos. Mesmo assim, eu não quero passar o trabalho que a mãe passa".

Atualmente, a rainha Ginga é dona Severina Maria Francisca Dias, também chamada pelos parentes maçambiqueiros de "Sibirina". Severina Dias foi coroada, na Catedral de Nossa Senhora da Conceição, em 1992, pelo padre Aloysio, cujo reinado mantém até hoje. Ela nasceu em Morro Alto. Com 20 anos, Dona Severina Dias trabalhou como cozinheira, por dois anos, na antiga Rodoviária de Osório, sob a administração do Sr. Alexandre Renda, pai do atual prefeito de Osório Sr. Eduardo Renda. Depois, mudou-se para Osório, em 1970, trabalhou em muitos bares e prestou serviços domésticos a muitas famílias. É funcionária pública aposentada, pela antiga CRT (Companhia Riograndense de Telecomunicações).

Com a condição de ter sido pajem das duas rainhas anteriores, Maria Teresa, desde 1971; e Tomázia, de 1978 até 1992. No tempo de Tomázia, de quem era prima, ela foi muito ativa, uma vez que cuidava da recepção aos convidados, além de representar a rainha Ginga em muitos "pagamentos de promessas". A rainha Ginga dona Severina Dias possui um amplo saber das rezas, dos cantos do Maçambique. Por meio da intercessão de Nossa Senhora do Rosário, ela acolhe os pedidos por milagres e curas; acolhe os agradecimentos e distribui as bênçãos aos fiéis católicos do Maçambique.

Por muitos anos, Severina realizou muitos partos domésticos, tanto em Morro Alto como em Osório. Em tais ocasiões, portava uma estatueta que representava a imagem da Nossa Senhora do Bom Parto. Aliás, quadros com imagens sacras é o que não faltam em sua residência, tais com de Santa Luzia, Santa Catarina, São Jorge e Santa Bárbara, atestando o seu grande fervor católico. Domina um amplo conhecimento acerca de ervas medicinais, por isso, muitas pessoas recorrem a ela, valendo-se da sua sabedoria. Ela é, indubitavelmente, a detentora da memória do sagrado e de grande parte da história da comunidade negra do Morro Alto e dos ofícios religiosos do Maçambique.

Certamente na passagem do tempo, na reafirmação e na construção da memória, ocorrem continuidades, rupturas, descontinuidades e reinvenções. Para finalizar, vejamos como ela reproduz a narrativa que consolida o mito de fundação da festa do Maçambique, e que vem sendo repassada de rainha Ginga para rainha Ginga:

"Eu sei que a falecida Maria Teresa contava assim: que isso aí, os brancos, eram o senhor. O senhor...os negros não festejavam, os negros era só pra trabalhar e os brancos tinham a festa...foram à festa e tinha uma menina, decerto era filha de algum abençoado.! Diz que foi e disse assim: - 'Meu pai, por que os brancos se divertem e os negros não? Os coitadinhos puxando carreta de cana, carreta de lenha, tocado a guiada, tocado a prego, eles não se divertem? E...:- 'Não, minha filha; é assim: os negros é prá trabalhar.' E ela: - 'Não, pode ser assim!' [...] Aí ela foi e disse assim: -'Vou fazer uma festa, meu pai.' Ele: - 'Quem sabe? Será que vai dar certo?' - 'Vou experimentar! Aí fez, a primeira festa, né? A primeira festa, não foi logo avante, não deu. Ela logo em seguida disse pro pai: - 'Eu vou tornar a fazer outra. Os nossos negros todos, vai se divertir ou não vai se divertir?' Adonde ela fez o maçambique. Decerto o outro santo...decerto não aceitou né, aí, ela puxou a Nossa senhora do Rosário. E continuou o maçambique."

Ela contou, ainda, de que a primeira festa teria dado certo , uma vez que havia um negro no palanque. Este estava condenado à morte, porém Nossa Senhora do Rosário mandou um enviado, a fim de convidá-lo para ser festeiro da Santa. Nesse meio tempo, o carrasco ironizava e ria do escravo, quando alguém indicou a chegada de um mensageiro. O enviado questionou das razões para matar uma pessoa e mandou parar. A seguir, chamou por aquele que estava condenado à morte. Solto o escravo, foi pedido a ele que lesse a carta, ao que ele retrucou, dizendo que não sabia ler. O homem pediu licença para ler a carta. E, assim, continuou a narração a rainha Ginga Severina:

"Aí diz que ele foi e disse: - 'Pode ler, pode ler, pra todo mundo ver.' Decerto pra ler alto, né? Aí ele leu, diz - 'Olha, Nossa Senhora do Rosário tá te convidando pra tu ser festeiro dela e tu fazer a festa dela.' Aí soltou o outro e deu liberdade pra ele na hora, ele deu a liberdade. Daquele dia em diante ele não ia trabalhar mais pra eles, né, ele ia trabalhar só pra fazer a festa da Nossa Senhora e queria uma festa boa! Então adonde que os negros tiveram festa foi devido à Nossa Senhora do Rosário."

É por estas razões expostas acima e devido às múltiplas memórias acumuladas, é que as rainhas gingas são o cerne da vida do maçambique. Devendo, por isso, serem admiradas e respeitadas.

BIBLIOGRAFIA

BRANCO, Estelita de Aguiar et. Al. Maçambique - Coroação de reis em Osório, Comissão Gaúcha do Folclore, Porto Alegre, RS, 1999;
BARCELLOS, Daisy et. Al. Comunidade Negra de Morro Alto - Historicidade, Identidade e Territorialidade, Ufrgs Editora, Porto Alegre, RS, 2004;
GUANDONIN, Manoil Vitório. Maçambique em Osório, Palestrina, Capão da Canoa, RS, Janeiro, 1986;
MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória., Mazza Edições/ Perspectiva, Belo Horizonte, MG, 1997;
MOURA, Maria da Glória da Veiga. Ritmo e Ancestralidade na Força dos Tambores Negros - O currículo invisível da festa, PPG em Educação, Usp, São Paulo, SP, 1997;
SERRANO
SILVA, Marina Raymundo da. Viajando Pelo Município, Associação dos Estudos Culturais, AEC, Osório, RS, 1999;
SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil Escravista - História da Festa de Coroação de Rei Congo, Humanitas, Ufmg, Belo Horizonte, MG, 2002;


Maçambiques - Todos os Diretos Reservados - Francisca Dias


por Lucas Luz para FÉsta Produções & Pesquisas em Culturas Populares e Tradicionais.
Foram respeitados a grafia e os temros originais do texto.