(publicado originalmente em 2002)
Quando ainda começava o gosto pelas curiosidades e rabiscava meus primeiros textos sobre cultura popular, escrevi uma pequena série - interrompida por mim mesmo e sabe-se lá por qual motivo - sobre a cultura popular gaúcha, de acordo com o meu conhecimento na época. Naquele momento recém e ainda estudante de jornalismo, estes textos foram publicados no finado site baseado e organizado por gentes da cidade de São Paulo, Entrecantos. Com o tempo, e sem minha permissão - o que também nunca foi problema - estes mesmos textos foram reproduzidos em diversos sites internet afora, colecionando, inclusive, alguns momentos engraçados sobre a utilização das fotos que por mim foram mal batidas na época. Não fossem essas imagens, alguns bons encontros talvez nunca tivessem ocorrido, ou seriam adiados pelas não coincidências. Bisbilhotando a rede na noite dessas, os encontrei novamente, publicados no site do CENTRO DE TRADIÇÕES GAÚCHAS DE NITERÓI. Pedindo licença para mim mesmo, seguem abaixo, mantendo as mesmas escritas, idéias, erros, imagens (neste site apenas uma imagem foi publicada), estes dois textos, escritos há quase nove anos atrás.
ESPECIAL RIO GRANDE DO SUL - PARTE I - 27/06/02
MUITO ALÉM DO CHIMARRÃO
Vivo em um estado que, assim como todas estas outras mini-nações que formam nosso mapa, é reflexo direto e subjetivo do que é nossa nação. Mestiçagem atrás de mestiçagem. Ou, como poetizei, mestiçagen, assim, com "n" mesmo, já que todos nossos gens, nossas raízes, estão por aí, todas perdidas, embrião pra novas diversidades. Mas hoje tenho apenas o compromisso de escrever sobre a cultura popular de meu estado, aquilo que se ousou chamar de folclore - e é - e que defasou muitas outras manifestações populares também existentes pelas bandas de cá. Ah, não falei ainda, escrevo do extremo sul do país, Porto Alegre, terra onde em qualquer esquina encontra-se alguém com a cuia e a erva pro chimarrão - pelo menos é o que já li em várias revistas de turismo, apesar de não concordar com tal proposição.
Mas então, falando sobre aquilo que realmente interessa, vamos a peleia. Quando comecei a desenvolver minhas pesquisas sobre folclore, me deparei com a questão: como são vistas as tradições do Rio Grande do Sul fora do meu estado? Chimarrão, bombacha, churrasco, bailes e CTGs... Pois bem. Tristeza minha foi descobrir que até mesmo para pessoas que viveram suas vidas inteiras aqui no sul, essa é a única realidade transparecida. Alemães, italianos, castelhanos e tantas outras etnias. Influências cruciais, referenciais básicos para esse entendimento. Mas e a cultura negra? Pois é, ela vive e sobrevive, por mais ínfimo que seja esse conhecimento pela imensa massa que aqui consome qualquer tipo de informação.
Tanto na região de Pelotas, onde muitas charqueadas foram palco de atrocidades na época da escravidão, ou em Osório, onde quilombos foram instalados nesse mesmo período, assim como em várias outras partes do estado, a cultura negra faz-se muito presente, instigando a curiosidade do inconsciente popular. Muitas pessoas se espantam ao saber que aqui no sul existe a cultura negra, e que, assim como na Bahia, ela também exerce papel fundamental para entendimento da alma do popular, das raízes, da questão do chão, da mãe.
Tambor genuinamente gaúcho, oriundo dos negros de Pelotas, o sopapo, assim como bateu forte no passado, hoje, através dessas formas modernas de reciclagem de idéias de alguns músicos, volta a fazer sua história. Batendo forte no amor e no favor. A alma de um povo, a alma do tambor. De grandes proporções, em formato de cone, o sopapo é tocado através de tapas em sua pele de couro, e assim como um dia foi batido forte por Giba Giba, hoje sua história continua, em inserções musicais que passam pelo rock, pelo funk, samba e por aí vai...
Da cidade de Osório, a 90 quilômetros de Porto Alegre, no litoral norte do estado, temos o Maçambique (não confundir com o Moçambique de Minas Gerais, embora apresentem semelhanças). Festa exclusivamente para negros, até permite-se que brancos participem, mas só se for em caso de promessa para Nossa Senhora do Rosário. Mulheres ainda que participem da festa, têm sua participação reduzida, mas sempre marcando presença dentro do contexto que a festa promove. Muitos dos participantes do último grupo de maçambique do estado nem sequer sabem a origem do ritual, o que é realmente um fato agravante.
Espero em breve poder dissertar mais sobre o maçambique, muito além do que essa introdução foi capaz (ou incapaz) de dizer. Subsídios estão sendo buscados, novos recursos, entrevistas, fotos... Tudo isso para que a grande massa entenda: a cultura do Rio Grande do sul vai além do que se acredita por aí. Essa introdução serviu apenas para dar uma excitada, fomentar, instigar a curiosidade. Aliás, não só as manifestações populares do sul se resumem ao que é transparecido por aí, mas, com certeza, todas as formas de manifestação popular de várias partes do país. Agora, um ponto onde não podemos cair na ingenuidade é o seguinte: o folclore não é meu, o folclore não é teu. É meu. É teu. É das esquinas do mundo. É teu e é meu e etc...Vai por aí!
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ESPECIAL RIO GRANDE DO SUL - PARTE II - 03/12/02
MUITO ALÉM DO CHIMARRÃO
A ginga de Osório
Manifestação afro-católica dos negros trazidos da África e que na região de Osório estabeleceram raízes, o maçambique é a representação da cerimônia de coroação do Rei Congo e da Rainha Ginga, esta, com poder superior ao rei.
Em uma época que Osório ainda se chamava Villa de Serra, e servia como ponto de passagem para os tropeiros que levavam e traziam gado entre São Paulo e Montevidéu, os negros que para cá foram trazidos para trabalhar nos canaviais dançavam e cantavam o maçambique, remetendo ao tempo em que ainda viviam no continente africano.
Ainda hoje, embora um pouco deturpado pela ação do tempo, o folguedo de maçambique resiste as mazelas tecnológicas, industriais e cosmopolitas no município de Osório, com o único grupo de maçambique do estado, o Grupo Maçambiques. No passado, houveram ternos de maçambique nos municípios de Palmares, Morro Alto, Cidreira, Tapes, Tavares e até mesmo na zona rural da capital gaúcha, Porto Alegre.
Nos primórdios, o auto dos maçambiques durava aproximadamente uma semana, e possuía caráter dramático, teatral. Hoje, tem duração de apenas quatro dias, começando suas festividades na segunda quinta-feira do mês de Outubro e terminando no domingo seguinte. Como todas as manifestações populares, pejorativamente chamadas folclore, o maçambique, com o passar dos anos, perdeu muito de seus elementos.
O Rei e a Rainha
Em um antigo reino em Angola, na África, no século XVII, a rainha Nginga Nbandi (Ginga) possuía um dos mais fortes exércitos da região. Temendo uma possível guerra, e sabendo possuir um exército menos preparado e mais fraco que o do reino de Angola, o Rei de Congo (não se sabe exatamente qual seu nome), propôs para a rainha Nginga que se casassem, assim unificando seus exércitos e os fortalecendo, para assim, poder conquistar mais terras africanas e derrotando os exércitos de outros reinos. Como condição para a concretização de sua união, a rainha Nginga impôs apenas uma condição: ela é quem deveria ter a última palavra, ou seja, ela seria a soberana no reino.
Lutando contra a colonização portuguesa, Nginga Nbandi e seu exército venceram o governador português João Corrêa de Souza, no ano de 1621. Nginga faleceu no ano de 1681, católica, batizada como Ana de Souza.
Toda essa história é representada durante os quatro dias do Auto dos Maçambiques. O ápice da cerimônia é quando o rei e a rainha são coroados pelo pároco da igreja onde se realizam as missas da festividade. Após serem coroados, dançantes, ao som dos tambores maçambiqueiros, cantam em meio ao salão da igreja:
“Tá c’roado, bem c’roado
Nosso grande imperador
Tá com a c’roa na cabeça
C’roa de nosso Senhor"
Capitães de espadas abrindo a passagem de Rei, Rainha, dançantes e donos da casa onde a promesse está sendo paga |
As duas varas de dançantes – a azul representando a rainha, e a vermelha representando o rei – simulam, em sua dança, a guerra entre os reinos de Angola e Congo. Rei e rainha são tratados com fidalguia, sendo reverenciados e respeitados por todos os integrantes do grupo.
Quando incorporando o personagem da rainha Ginga, Severina Francisca Dias, 79 anos, demonstra ser uma pessoa rude, com o olhar denotando sua autoridade. Quando tira a coroa de rainha, Severina torna-se uma senhora doce, simpática.
Severina começou como pajen da lendária rainha falecida Maria Tereza, que se dizia consciente de encarnar a nobreza que veio com os seus ancestrais africanos, sabendo do dever de preservar tradições herdadas. Rainha Ginga do Maçambique há vinte anos, Severina herdou a coroa de sua prima Tomázia, esta, sucessora de Maria Tereza, que faleceu com mais de 100 anos de idade.
O rei de Congo, Sebastião Francisco Antônio, 73 anos, ao contrário do que muitos pensam, não é marido de Severina, mas sim seu irmão. Para ocupar o cargo de rei, é preciso indicação por parte das pessoas com maiores cargos dentro do grupo, e, para o cargo de rainha, a sucessão se dá através da hereditariedade, a rainha passa para sua filha. Em casos especiais, como o de Tomázia e Severina, quem sucede a rainha é alguém próximo, neste caso, a irmã.