quinta-feira, 4 de agosto de 2011

As Congadas de Osório (Dante de Laytano, 1945) - parte 02

Sendo uma das principais propostas do projeto Buscando Coroa, pesquisar e encontrar antigos materiais é um tanto trabalhoso. Primeiro, porque muitos destes materiais são praticamente inacessíveis. Segundo, porque quando encontrados nem sempre eles apresentam as condições ideais para manuseio e "degustação" física.  Entretanto, as informações que eles nos trazem, quando interpretadas, são de valor inestimado. É preciso, primeiramente, entender o contexto da época em que o autor dessas informações (livros, artigos, fotos, gravações áudiovisuais, registros em geral, etc.) viveu, pois isso pode dizer um tanto sobre a linguagem por ele abordada e os conceitos trazidos. Também precisamos entender a dificuldade logística, e nisso incluo acesso, transporte e equipamentos, passada para as vivências e registros.

Dante de Laytano nos traz em seu livro "As Congadas de Osório" uma riqueza impressionante de materiais e informações. Não tenho certeza, mas acredito que tenha sido esse o primeiro contato mais expressivo e devidamente registrado em obra. Em 1946, em missão coordenada pelo Centro de Pesquisas Folclóricas da Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil, o pesquisador e folclorista carioca Luiz Heitor Côrrea de Oliveira (1905 - 1992),  com apoio do professor Ênio de Freitas e Castro (1911 - 1975), registrou em solo gaúcho, em áudio e fotos, os rituais do BATUQUE de Porto Alegre e do MAÇAMBIQUE DE OSÓRIO. Isso, apenas um ano após o lançamento do livro de Dante de Laytano (mais informações sobre os registros de Luiz Heitor Côrrea aqui).

Estas leituras, aqui especificamente as dos escritos de Dante de Laytano, são por nós avaliadas e nos trazem vários questionamentos, dúvidas e comparações. Acompanhamos as festas de Nossa Senhora do Rosário desde o ano de 2001, há dez anos atrás, e possuímos vasto acerto, aumentado em virtude do apoio da FUNARTE, e conseguimos estabelecer paralelos e entender algumas das várias "mudanças" que o grupo vem passando ao longo de toda a sua trajetória. Nem toda a mudança é satisfatória, às vezes providencial, mas fazem parte da dinâmica de grupos, do ser humando e, não aceitá-las seria negar o tempo.

Recentemente, em conversa na cozinha da casa de Francisca Dias, presidente da Associação Religiosa e Cultural Maçambique de Osório e filha da Rainha Ginga Severina Dias, falávamos exatamente sobre estes processos. Alguns, se dão de forma orgânica. Outros, por imposição, talvez necessidade. Interessa, também, que motivos às vezes não faltam para mudanças. Porém, nem sempre é possível que o grupo aceite estas possíveis mudanças de forma passiva e eles mesmos se tornam resistentes para a manutenção de suas tradições. Os seus integrantes envelhecem, alguns vão morar na capital, os jovens se tornam pais muito cedo, o tecido antes usado já não é mais encontrado.

Nessa mesma ocasião estava presente Faustino Antônio, Chefe de Tambor do Maçambique de Osório e um dos principais articuladores junto aos jovens. Lembro que ele me pediu para que tentasse encontrar em Porto Alegre os quepes militares - da marinha - que eles usam (Faustino e os dois Capitães de Espada), pois eles não tinham mais estes chapéus em posse, apenas um, já desgastado pelo uso. Nas fotos que veremos a seguir, presentes no livro de Dante de Laytano, tais quepes aparecem de forma mínima. Conheço também uma história, e nunca confirmei com eles a veracidade da mesma, que uma das espadas usada atualmente pelos Capitães de Espada foi presenteada por um policial da cidade de Osório. Tal policial, hoje falecido, é pai de uma amiga e nunca tive a oportunidade de conversar com ele sobre.

Oralidade, memórias, envelhecimento, lembranças, mudanças climáticas, industrialização, mecanização das lavouras. Expoentes cruciais para boa parte das mudanças que, inegavelmente, acontecem e são, de certa forma, fundamentais para que os grupos se mantenham vivos e sejam interesse da comunidade ao redor. Entre todas as manifestações e grupos tradicionais por nós já vistos, dá para sentir um orgulho gigante dos jovens que fazem parte do Maçambique de Osório, basicamente como dançantes: eles gostam e se entregam ao grupo quando de suas atividades e realizações. 

Abaixo, algumas das fotos anexas ao livro de Dante de Laytano. Pena não estarem em uma boa qualidade, e as imagens que aqui estão são fotos das fotos, pois o livro que possuímos em nosso acervo já está desgastado, não sendo possível cópias, scaneamento ou algum outro tipo de recurso. Em algumas das fotos utilizamos de tratamento básico digital, para que ao menos seja possível a compreensão do que queremos mostrar.

À porta da igrejam o "Capitão", depois de entrar a bandeira, comanda outros movimentos da Congada.

Espadas cruzadas para entrada da Côrte.

Entrada do rei do Congo.

Essas três primeiras fotos mostram algo que já evidenciamos aqui antes: o cruzar de espadas para a passagem do grupo em entradas/saídas de ambientes fechados. Chamo atenção para os ornamentos de cabeça presente nestas fotos. Os dançantes usando chapéus aparentemente de papel, em formato de coroa - também - e com penas, o que, talvez, seja influência indígena; o quepe; e coroa da Rainha, há muito substituída. Outro dado importante é a presença de roupas escuras, algo hoje impensável, pois a "Roupa da Santa", terminologia correta para o figurino (este um termo pejorativo) deve ser branca.

Um "soldado".

Capitão da Congada.

Na foto mais acima, a pena suspensa no chapéu (alguém sabe como esse tipo de chapéu chama?). Abaixo, um dos Capitães-de-Espada em suas vestes escuras.

Os reis e as rainhas, porta-estandarte, alferes e pagens diante do altar.

O Altar de N. Sra. do Rosário com a coroa do Festeiro e o Guarda.

Devoção de Na. Sra. do Rosário. Os reis e as rainhas e mais dignidades ao lado do altar. Os soldados ou dansantes de pés descalços.

Na primeira foto desta sequência, percebe-se o uso da coroa por parte dos reis e dos festeiros. Por algum motivo talvez só sabido na época, as coroas dos festeiros sugerem uma importância visual maior que a dos reis. Atualmente, somente a Rainha Ginga e o Rei de Congo usam coroas.  Os dançantes, ajoelhados em direção aos reis, já se fazem número equivalente ao dos dias atuais.

O "tambor" acompanha o solista. Repare-se o avental.

O "tambor" inicia a saída do terno.


Cenas das Congadas, em marcha.

Nesta sequência já é possível visualizar o antigo avental usado pelos dançantes, maior do que o atual. Na primeira foto, o tamboreiro, aparentemente não um dançante que naquele momento tocava tambor - embora isso seja feito até os dias atuais - toca tambor também descalço. A última foto traz uma imagem e significância muito importante: a bandeira de Nossa Senhora do Rosário está aberta, o que hoje não acontece e não é aceito pelo grupo.

Rei da Festa (Festeiro).

Rainha da Festa (Festeira).

Festeiros e suas imponentes coroas.

Rainha Ginga.

Rei do Congo.
Reis e suas coroas diminutas, quando comparadas com as dos festeiros.

Evoluções coreográficas.

Evoluções coreográficas.

Evoluções coreográficas.

Nestas fotos é possível analisar algumas evoluções nas coreografias dos dançantes, assim como os outros pontos já levantados anteriormente. Sei, através da oralidade, que a dança, hoje, apresenta algumas leves alterações da forma como era dançada em um passado não tão distante. Dizem, os próprios maçambiqueiros, que a dança hoje está mais acelerada, frenética (termo meu, de acordo com meu entendimento), e que antigamente ela era mais cadenciada, sensual. Neste conjunto de fotos também é possível ver guardas-chuva (sombrinhas), segurados pelos pajens da Rainha Ginga e do Rei de Congo. Este utensílio é muito usado em manifestações do congado brasileiro, inclusive nos maracatus pernambucados, nos quais são mais ricos e cheios de detalhe, sendo chamados por pálio. Tem a função de proteger os reis das possibilidades do tempo, assim como para demonstrar ao público suas realezas e reinados. Nos últimos anos, por falta de pessoas para a função de pajen, não está sendo mais utilizado.

(...)
*todas as legendas conforme originais do livro "As Congadas de Osório" (conforme registro no livro, fotografias por Milton Kroef)

por Lucas Luz para FÉsta Produções & Pesquisas em Culturas Populares e Tradicionais.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

As Congadas de Osório (Dante de Laytano, 1945) - parte 01

Importante registro sobre as congadas gaúchas, o livro "As Congadas do Município de Osório", lançado no ano de 1945 e escrito por Dante de Laytano, é também o primeiro registro dedicado exclusivamente as congadas do Rio Grande do Sul. Antes, Antônio Stenzel Filho já havia as citado em seu livro "A Vila da Serra - Conceição do Arroio" (antigo nome da cidade de Osório), no qual descrevia os usos e costumes da localidade até o ano de 1872. São estes dois livros, talvez, os primeiros registros bibliográficos que discorrem sobre a cidade de Osório, ambos citando a congada hoje apenas conhecida como Maçambique de Osório. Embora escrito há mais de meio século, o livro de Dante de Laytano é ainda hoje um dos mais importantes registros realizados sobre os grupos de negros gaúchos organizados para as festividades da congada.


Dante de Laytano começa seus escritos contextualizando a formação histórica do município, suas primeiras e pequenas indústrias de açúcar e mandioca, as formações geográficas da cidade e os termos que etimológicamente remetem a influência africana no local. Coloca as congadas registradas no ano de 1945 em "mais ou menos" de acordo com as congadas antigas, segundo testemunhos de pessoas contemporâneas as épocas passadas. Já de início, aponta como provável origem paras as congadas de Osório a segunda metade do século XVIII, pois antes desse período era, na época, difícil de se imaginar uma colonização regular do Rio Grande do Sul.

Não dissertarei aqui (pelo menos por agora) sobre parte importantíssima dos escritos de Dante de Laytano que falam sobre a geografia local e sobre como Osório e outros municípios ao redor estavam estabelecidos, pois muitos fizeram, ao longo de suas histórias, parte de uma mesma e única localidade. Da mesma forma, é importante saber também sobre as relações hereditárias e de parentesco, assim como a posse de escravos por parte dos senhores donos de engenho e latifúndios. Esse entendimento explica, ou pelo menos traz idéias, sobre como as congadas aconteceram - e ainda acontecem, mesmo que de forma diminuta e não em todos os locais de outrora - em vários locais atualmente distintos do Rio Grande do Sul, como Uruguaiana, Rio Grande, munícipios das margens da Lagoa dos Patos, Cachoeira do Sul, Viamão, Rio Pardo, Mostardas, Palmares, Passo Fundo e Osório.

No ano de 1945, as congadas do município de Osório aconteceram nos dias 04, 05 e 06 de Janeiro (período em que muitas manifestações tradicionais do Brasil tem seu apogeu, em homenagem aos Reis Magos - Ciclo de Reis), na própria cidade, com elementos vindos do interior do município, na quase totalidade de negros, embora contando com a presença de alguns caboclos e muitos mestiços (termos utilizados pelo autor), na maioria também mulatos. Atualmente, os Maçambiques de Osório comemoram sua devoção em dois momentos anuais: São Benedito, quando do segundo final de semana de Maio, próximo ao dia 13 (Abolição da Escravatura), no distrito de Aguapés, e em sua festa máxima, em louvor a Nossa Senhora do Rosário, entre o segundo e o terceiro final de semana do mês de Outubro, quando invadem o centro da cidade de Osório e a Igreja Matriz da cidade.

Dante de Laytano descreve uma formação muito semelhante com a que atualmente pratica o Maçambique de Osório, estando a congada, no instante registrado, formada por um Capitão, um suplente de capitão, Rei do Congo, Rainha Ginga, Festeiro, Festeira, dois Guias (primeiros) e dois Guias (segundos), tamboreiros (2), Pagens (4), dois capitães de espada e Dançantes de número variável (18, 24), etc, além do coronel e alferes da bandeira*. Na última Festa do Rosário que presenciamos, no ano de 2010, o Maçambique de Osório estava composto por Rei de Congo e Rainha Ginga, Capitães de Espada (2), guias (2), alfares da bandeira, tamboreiros (2, sendo que um deles é o Chefe-de-Tambor, Faustino Antônio - o grupo esperava que fossem, na ocasião, três tamboreiros, porém o Tio Antônio Néca, um dos mais antigos integrantes do grupo, estava com problemas de saúde em sua família), e uma média de 20 dançantes, quase todos eles jovens abaixo dos 18 anos de idade. Aqui, fica uma dúvida: será o Capitão descrito pelo autor a mesma personagem do Chefe-de-Tambor, porém sem a função de também tocar tambor e apenas dirigir as marchas, danças, cantos e cerimônias? O autor também informa sobre a função de "sentinelas" exercidas pelos Capitães de Espada, com função ainda hoje praticada, conforme descrito em texto anterior aqui publicado, datado do ano de 2002.

(...)

*foi respeitada a grafia conforme o registro original do autor.

por Lucas Luz para FÉsta Produções & Pesquisas em Culturas Populares e Tradicionais.