segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O Maçambique de Osório e a Festa do Rosário

Texto escrito e publicado originalmente no portal de notícias web Sul21 em 23/10/2011


O Maçambique de Osório e a Festa do Rosário



Osório, terra dos ventos. Terra litorânea da passagem de soslaio pras praias nortes gaúchas, tão mal faladas mas tão preenchidas quando do calor do verão. Terra das águas das lagoas. Terra dos Maçambiques. E são eles os responsáveis, provavelmente, pelos primeiros registros sobre o município, quando este ainda se chamava “Vila da Serra” e, após, “Conceição do Arroio”. Registros estes elaborados por Antônio Stenzel Filho, em livro chamado “A Vila da Serra – Conceição do Arroio”, escrito ainda no século XIX, e “As Congadas do Município de Osório”, publicado no ano de 1945 e escrito pelo professor e folclorista Dante de Laytano.

O maçambique é uma das variações  gaúcha das congadas (existem, ainda, os Ensaios de Promessa de Quicumbi, nas cidades de Mostardas e Tavares, e o Quicumbi, no Rincão dos Pretos, em Rio Pardo).  As congadas são uma tradição presente em todo o território brasileiro e que possuem origens e influências nas festas de coroação de reis negros praticadas durante o período colonial, assim como breves influências portuguesas e, dependendo do local, também indígenas. Em comum, a devoção aos santos católicos Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Nossa Senhora da Penha e Santa Efigênia. Em um difícil resumo, o Maçambique de Osório é uma congada gaúcha, tradição afro-católica praticada por negros devotos a Nossa Senhora do Rosário e que através de seus cantos, tambores e danças pagam promessa para graças atendidas pela santa.


Grupo secular, o Maçambique tradicionalmente possui dois importantes momentos ao longo do ano: a Festa de São Benedito, comemorada no segundo final de semana de maio, próximo ao dia 13, e a Festa do Rosário, no segundo final de semana do mês de Outubro, mas atualmente deslocada para qualquer um dos outros finais de semana deste mesmo mês, conforme a disponibilidade da igreja local e de acordo com o calendário da prefeitura. Nos últimos anos, a Festa de São Benedito, realizada no distrito de Aguapés, próximo a sede da cidade de Osório, não aconteceu.

Ao longo de sua existência e prática, o maçambique foi realizado em diferentes datas do calendário. Antigamente, conforme relatado por Dante de Laytano, o maçambique acontecia no período de 04 à 06 de janeiro, dentro do Ciclo de Reis, quando se comemora os Três Reis Magos. Este período também é um dos importantes momentos datados das culturas tradicionais e populares brasileiras, sendo celebrado já desde o dia 24 de dezembro, véspera de Natal. O progresso e sua dinâmica são agentes fundamentais para estas mudanças que, se não bem assimiladas e encaradas, podem prejudicar significativamente a manutenção destas práticas e ciências populares.

Festa vem perdendo tradições negras


Nos últimos dez anos, intervalo de tempo em que vivencio o maçambique e suas gentes, o grupo e a comunidade do Caravággio, onde a maioria dos integrantes reside, é possível perceber mudanças na festa e no grupo, fundamentadas em tantas conversas com os próprios e também em leituras de materiais anteriormente produzidos por terceiros. Permanecem a fé em Nossa Senhora do Rosário e seus símbolos, assim como os ritos estabelecidos e orgânicos da prática do maçambique.



Organizada por um casal de festeiros, escolhidos na festa do ano anterior - e que nos últimos anos sempre gera polêmica, em virtude de imposições da igreja que mudou a tradição da escolha feita através de sorteio no copo, quando igreja, maçambiques e casal de festeiros atual indicam cada um um nome –, a Festa do Rosário atualmente parece desprender-se das tradições negras católicas do maçambique, estabelecendo-se como um evento de cunho social organizado por uma pretensa elite negra local não autêntica. Triste saber que esses mesmos festeiros, durante o decorrer do ano, não se importam e não se misturam com os negros maçambiqueiros, mantenedores e responsáveis por esta tradição.

Este ano, graças a insistência de Francisca Dias, presidente da Associação Cultural e Religiosa Maçambique de Osório e filha de Severina Dias, Rainha Ginga, a prefeitura fez o repasse da verba destinada no orçamento anual do município diretamente para o grupo, o que amenizou em pouco o tanto de contradições e equívocos dos últimos anos gerados pela igreja, casal de festeiros e poder público. Assim, os maçambiqueiros tiveram um pouco mais de controle sobre a festa em questão, podendo, inclusive, se alimentar de forma melhor, sem precisar grandes esforços.


A Festa do Rosário tem início na quinta-feira, quando o mastro com a bandeira de Nossa Senhora é erguido ao lado da igreja. Nesse dia, é realizada a primeira das missas com a presença dos maçambiques. Nela, não há nenhum rito diferente. Sua dinâmica não sofre interferência alguma com a presença do grupo, exceto pelo fato da coroação dos reis e alguns cantos do grupo, específicos para o momento.

A sexta-feira inicia-se com a mesa de doces, reverência para a rainha. Neste ano, não ocorreram pagamentos de promessa previamente acertados. Apenas sábado pela noite, quando o grupo foi surpreendido, já no salão paroquial, onde executam parte de suas danças, se concentram, tem o reinado de seus reis montado e as refeições e bailes acontecem. Em todos os quatro dias são realizadas missas, sempre respeitando a mesma lógica cotidiana católica, com pouca interferência do maçambique e sua tradição. No domingo, pela manhã, a missa é extendida com a procissão da imagem de Nossa Senhora do Rosário, quando maçambiques e fiéis percorrem o entorno da praça, defronte a igreja, acompanhando a imagem no andor, cantando, tocando tambor e dançando em seu respeito. Pela tarde, é a procissão de arriamento do mastro que parece não queimar, mesmo com a quentura do asfalto, os pés descalços dos dançantes do maçambique.



Com a possibilidade de um maior gerenciamento e zelo pela festa, a programação da tarde de domingo foi pensada e proposta pelo próprio Maçambique. De Porto Alegre, os grupos Maracatu Truvão (grupo de percussão e dança porto alegrense que pesquisa, divulga e executa o ritmo do maracatu de baque virado, tradicional de Pernambuco) e Afro-Sul Odomodê, com seus meninos e meninas tocando e dançando, fizeram com que a festa, naquele momento, fosse mais inteira. Satisfação plena dos protagonistas, insatisfeitos com o leilão pós-almoço anualmente proposto pelos festeiros e que, certamente, não beneficia o grupo e seus interesses.

Com certeza, o grupo passa por diversos problemas, esquecidos ali naqueles momentos de gozo e devoção. É um grupo com origens quilombola (Morro Alto), com integrantes em sua maior parte residentes na periferia de Osório, negros trabalhadores da construção civil, indústrias, sub-empregos. Condições estas que com o passar dos anos resultam em mudanças no grupo e em suas configurações, na Festa do Rosário e em sua dinâmica. É o progresso e a inevitável aceitação do tempo que os persegue. O que fica, é “ir pela Santa”, como ouvi de um jovem dançante, e a frenética vontade em “dar uns pulos”, quando dançam em respeito aos seus reis e sua virgem de devoção.


Para saber um pouco mais sobre as congadas gaúchas acesse www.buscandocoroa.com.br 

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Tradição onde branco não entra

Dando início a semana na qual Maçambiques comemoram a Festa do Rosário, disponibilizo aqui matéria provavelmente escrita no ano de 2001, mas que acredito ter a encontrado em 2002. Há tempos a procurava em meus guardados e somente neste final de semana, coincidentemente, foi que a localizei.
Ainda no início de minhas pesquisas, sem metodologia, princípios básicos e/ou regras fundamentais, não preocupei-me com algumas informações e cometi a ingênua gafe em não anotar o nome do(s) jornalista(s) responsável(is) pela matéria, tampouco a data real de sua publicação. O jornal, pelo que me lembro, era o Diário Catarinense. Ctrl C Ctrl V + delete foram as ferramentas necessárias para a edição/colagem desta matéria em word e que agora scaneio, transformo em imagem e colo aqui.

obs.: na época, destaquei alguns trechos e tentarei comentá-los agora - se ainda lembrar os reais porquês desses grifos.


"o último grupo de maçambique do Rio Grande do Sul nem sabe direito qual a origem do ritual"

Na época, o grupo ainda não havia passado pela ruptura acontecia em meados dos anos 2000. Hoje, são dois os grupos de maçambique: Maçambique de Osório e Maçambique de Morro Alto. Embora os dois possuam legitimidade histórica, é o grupo de Osório que manteve a continuidade da tradição, sem parar, enquanto o outro passou por intervenção e incentivo da Fundação Palmares para que "ressurgisse".

De qualquer forma, é difícil dizer que este era o último grupo de maçambique do Rio Grande do Sul pois, provavelmente, sempre foi o único. Acredito sim na existência de vários grupos de congadas no Rio Grande do Sul, feito os Quicumbis e os Ensaios de Promessa, sendo "maçambique" a forma como este grupo em específico ficou conhecido.

A origem do ritual se perde no tempo. Talvez, para os que fazem o maçambique, os maçambiqueiros e a comunidade que os abriga, saber desta origem nem importe, pois o que prevalece é a fé em Nossa Senhora do Rosário e a necessidade de continuar o que os seus antigos já faziam.

"durante a festa de Nossa Senhora do Rosário, no segundo domingo de Outubro"

Nesta última década, o que era criteriosamente parte de um calendário (o segundo final de semana de Outubro), passou a variar em virtude de diversos fatores, impostos pela Igreja e prefeitura da cidade, mesmo que ainda se priorize e se mantenha o mês de Outubro. Ao longo da história dos Maçambiques, as datas em que realizam suas comemorações já mudaram algumas vezes.

"nem mesmo os próprios maçambiques sabem bem de onde veio a tradição, qual sua importância e quem eles próprios são".

E precisam? Existe realmente necessidade em saber da sua tradição quando se tem tanto apego, apreço e respeito por sua história e daqueles que os antecederam? Mas, mesmo assim, boa parte de seus integrantes sabem sim da sua história. São os mais velhos que a contam e reproduzem para suas famílias e integrantes mais jovens. E eles a ressignificam, sempre de acordo com o tempo e progresso. É importante dizer também que talvez eles desconheçam a história real da criação do grupo e das congadas no Brasil como um todo, mas o mito da criação é o que em muitas vezes talvez seja mais significativo.

"Mas aqui branco não entra" (trecho não destacado no texto)

É este recorte de fala de Severina Dias, Rainha Ginga do Maçambique de Osório, que dá título a matéria. Uma péssima escolha, pois isolado do texto ele parece um tanto radical e preconceituoso.

De fato, o Maçambique de Osório é uma tradição de matriz africana e preceitos católicos, na qual apenas a Rainha, sua pajem e a alfares da bandeira são mulheres, todas negras. Dançantes, tamboreiros, capitães de espada, todos homens, todos negros. Nos últimos anos, por aproximação e afeto, a presença de dançantes "mais claros" (no caso, um único jovem) se tornou constante, mesmo sendo fato raro.


Logo no primeiro parágrafo da imagem acima, fragmentos do mito de criação do Maçambique.