O Maçambique de Osório e a Festa do Rosário
Osório,
terra dos ventos. Terra litorânea da passagem de soslaio pras praias nortes
gaúchas, tão mal faladas mas tão preenchidas quando do calor do verão. Terra das
águas das lagoas. Terra dos Maçambiques. E são eles os responsáveis,
provavelmente, pelos primeiros registros sobre o município, quando este ainda
se chamava “Vila da Serra” e, após, “Conceição do Arroio”. Registros estes
elaborados por Antônio Stenzel Filho, em livro chamado “A Vila da Serra –
Conceição do Arroio”, escrito ainda no século XIX, e “As Congadas do Município
de Osório”, publicado no ano de 1945 e escrito pelo professor e folclorista
Dante de Laytano.
O
maçambique é uma das variações
gaúcha das congadas (existem, ainda, os Ensaios de Promessa de Quicumbi,
nas cidades de Mostardas e Tavares, e o Quicumbi, no Rincão dos Pretos, em Rio
Pardo). As congadas são uma
tradição presente em todo o território brasileiro e que possuem origens e
influências nas festas de coroação de reis negros praticadas durante o período
colonial, assim como breves influências portuguesas e, dependendo do local,
também indígenas. Em comum, a devoção aos santos católicos Nossa Senhora do
Rosário, São Benedito, Nossa Senhora da Penha e Santa Efigênia. Em um difícil
resumo, o Maçambique de Osório é uma congada gaúcha, tradição afro-católica
praticada por negros devotos a Nossa Senhora do Rosário e que através de seus
cantos, tambores e danças pagam promessa para graças atendidas pela santa.
Grupo
secular, o Maçambique tradicionalmente possui dois importantes momentos ao
longo do ano: a Festa de São Benedito, comemorada no segundo final de semana de
maio, próximo ao dia 13, e a Festa do Rosário, no segundo final de semana do
mês de Outubro, mas atualmente deslocada para qualquer um dos outros finais de
semana deste mesmo mês, conforme a disponibilidade da igreja local e de acordo
com o calendário da prefeitura. Nos últimos anos, a Festa de São Benedito,
realizada no distrito de Aguapés, próximo a sede da cidade de Osório, não
aconteceu.
Ao
longo de sua existência e prática, o maçambique foi realizado em diferentes
datas do calendário. Antigamente, conforme relatado por Dante de Laytano, o
maçambique acontecia no período de 04 à 06 de janeiro, dentro do Ciclo de Reis,
quando se comemora os Três Reis Magos. Este período também é um dos importantes
momentos datados das culturas tradicionais e populares brasileiras, sendo
celebrado já desde o dia 24 de dezembro, véspera de Natal. O progresso e sua
dinâmica são agentes fundamentais para estas mudanças que, se não bem assimiladas
e encaradas, podem prejudicar significativamente a manutenção destas práticas e
ciências populares.
Festa vem perdendo tradições negras
Nos
últimos dez anos, intervalo de tempo em que vivencio o maçambique e suas
gentes, o grupo e a comunidade do Caravággio, onde a maioria dos integrantes
reside, é possível perceber mudanças na festa e no grupo, fundamentadas em
tantas conversas com os próprios e também em leituras de materiais
anteriormente produzidos por terceiros. Permanecem a fé em Nossa Senhora do
Rosário e seus símbolos, assim como os ritos estabelecidos e orgânicos da
prática do maçambique.
Organizada
por um casal de festeiros, escolhidos na festa do ano anterior - e que nos
últimos anos sempre gera polêmica, em virtude de imposições da igreja que mudou
a tradição da escolha feita através de sorteio no copo, quando igreja,
maçambiques e casal de festeiros atual indicam cada um um nome –, a Festa do
Rosário atualmente parece desprender-se das tradições negras católicas do maçambique,
estabelecendo-se como um evento de cunho social organizado por uma pretensa
elite negra local não autêntica. Triste saber que esses mesmos festeiros,
durante o decorrer do ano, não se importam e não se misturam com os negros
maçambiqueiros, mantenedores e responsáveis por esta tradição.
Este
ano, graças a insistência de Francisca Dias, presidente da Associação Cultural
e Religiosa Maçambique de Osório e filha de Severina Dias, Rainha Ginga, a
prefeitura fez o repasse da verba destinada no orçamento anual do município
diretamente para o grupo, o que amenizou em pouco o tanto de contradições e
equívocos dos últimos anos gerados pela igreja, casal de festeiros e poder
público. Assim, os maçambiqueiros tiveram um pouco mais de controle sobre a
festa em questão, podendo, inclusive, se alimentar de forma melhor, sem
precisar grandes esforços.
A
Festa do Rosário tem início na quinta-feira, quando o mastro com a bandeira de
Nossa Senhora é erguido ao lado da igreja. Nesse dia, é realizada a primeira
das missas com a presença dos maçambiques. Nela, não há nenhum rito diferente.
Sua dinâmica não sofre interferência alguma com a presença do grupo, exceto
pelo fato da coroação dos reis e alguns cantos do grupo, específicos para o
momento.
A
sexta-feira inicia-se com a mesa de doces, reverência para a rainha. Neste ano,
não ocorreram pagamentos de promessa previamente acertados. Apenas sábado pela
noite, quando o grupo foi surpreendido, já no salão paroquial, onde executam
parte de suas danças, se concentram, tem o reinado de seus reis montado e as
refeições e bailes acontecem. Em todos os quatro dias são realizadas missas,
sempre respeitando a mesma lógica cotidiana católica, com pouca interferência
do maçambique e sua tradição. No domingo, pela manhã, a missa é extendida com a
procissão da imagem de Nossa Senhora do Rosário, quando maçambiques e fiéis
percorrem o entorno da praça, defronte a igreja, acompanhando a imagem no
andor, cantando, tocando tambor e dançando em seu respeito. Pela tarde, é a
procissão de arriamento do mastro que parece não queimar, mesmo com a quentura
do asfalto, os pés descalços dos dançantes do maçambique.
Com
a possibilidade de um maior gerenciamento e zelo pela festa, a programação da
tarde de domingo foi pensada e proposta pelo próprio Maçambique. De Porto
Alegre, os grupos Maracatu Truvão (grupo de percussão e dança porto alegrense
que pesquisa, divulga e executa o ritmo do maracatu de baque virado,
tradicional de Pernambuco) e Afro-Sul Odomodê, com seus meninos e meninas
tocando e dançando, fizeram com que a festa, naquele momento, fosse mais
inteira. Satisfação plena dos protagonistas, insatisfeitos com o leilão
pós-almoço anualmente proposto pelos festeiros e que, certamente, não
beneficia o grupo e seus interesses.
Com
certeza, o grupo passa por diversos problemas, esquecidos ali naqueles momentos
de gozo e devoção. É um grupo com origens quilombola (Morro Alto), com
integrantes em sua maior parte residentes na periferia de Osório, negros
trabalhadores da construção civil, indústrias, sub-empregos. Condições estas
que com o passar dos anos resultam em mudanças no grupo e em suas
configurações, na Festa do Rosário e em sua dinâmica. É o progresso e a
inevitável aceitação do tempo que os persegue. O que fica, é “ir pela Santa”,
como ouvi de um jovem dançante, e a frenética vontade em “dar uns pulos”, quando
dançam em respeito aos seus reis e sua virgem de devoção.
Para saber um
pouco mais sobre as congadas gaúchas acesse www.buscandocoroa.com.br