sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Conjunto Musical Os Botinhas


A amiga Luciana Conceição, através do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com o intento em obter o título de mestre em Desenvolvimento Rural, elaborou a dissertação “RELAÇÕES DE RECIPROCIDADE QUILOMBOLA: PEIXOTO DOS BOTINHAS E CANTÃO DAS LOMBAS – MUNICÍPIO DE VIAMÃO/RS. Nos conhecemos ano passado, quando em um simpósio sobre territórios quilombolas no Rio Grande do Sul - no qual eu não participava, apenas trabalhava em uma atividade paralela – Luciana apresentou trechos de sua dissertação e inevitavelmente falou sobre a antiga prática do quicumbi em um dos territórios vivenciados, estudado e analisado.
De longe escutava atento e curioso, quando esta sua citação me chamou a atenção. Em poucos dias já entrava em contato com ela para que pudesse saber um pouco mais sobre este fato até então inédito para mim. Era um dia quente de janeiro quando fomos até estes quilombos, para que eu pudesse conhecer, in loco, um pouco sobre essa antiga prática e tradição. Atualmente, o grupo de quicumbi do Peixoto dos Botinhas está completamente desativado, sendo algo presente apenas nas memórias dos mais velhos. Os mais jovens, contou Luciana, têm vergonha em dar continuidade a esta importante manifestação da identidade negra local, pois na escola ou em outros momentos de convívio, entre amigos e paqueras,  a gozação é provável, e o funk e pagode são muito melhores aceitos socialmente.
O quicumbi, no quilombo Peixoto dos Botinhas, era realizado pelo conjunto musical “Os Botinhas”, o que já lhe confere uma característica própria, pois era executado por um conjunto musical dedicado em animar bailes, tanto dos brancos quanto dos negros, diferentemente dos grupos de Osório e Morro Alto (maçambique, apenas religioso), e dos Ensaios de Promessa de Tavares e Mostardas. Quando praticavam o quicumbi, dançavam com sinos amarrados em suas pernas – algo semelhante aos guizos e maçacaias dos maçambiques, com a provável mesma intenção e representação – e também com facas. Danças com facas são presentes em várias tradições brasileiras, destacando o maculelê e a dança dos facões praticadas aqui mesmo no Rio Grande do Sul. No interior de São Paulo vários são os grupos que dançam o Moçambique com bastões e sinos nas pernas (paiás), o que traz, também e novamente, a idéia de uma rede e origens cada vez mais comum as congadas brasileiras. Estes bastões, ao longo das evoluções das danças dos moçambiques, são batidos uns contra os outros, representando duelos entre mouros e cristãos.
O conjunto musical d’Os Botinhas praticava também o Terno de Reis, o que nos evoca, outra vez, a dinâmica e versatilidade das congadas do sudeste brasileiro, nas quais é possível encontrar as congadas, (Congada, Moçambique), folia de reis, candombe, jongo. Por lá ouvi que os granjeiros, fazendeiros e estancieiros locais, apesar de possuírem seus próprios ternos de rei, preferiam chamar o terno dos Botinhas, pois este era muito mais bonito e os negros dançavam com muito mais graça e  desenvoltura.
A foto incluída por Luciana em seu trabalho é de uma validade incrível. As vestes d’Os Botinhas (ou as que usam na foto) em muito se assemelham com as dos maçambiques de Osório e quicumbis de Mostardas e Tavares. Não por menos, todos estes territórios estão intimamente ligados (a própria Bacopari, citada no texto), sendo todos eles partes de uma mesma freguesia em tempos de outrora, o que faz, até mesmo, com que relações de parentesco sejam estabelecidas. Curiosa é a presença da gaita (sanfona / acordeom) entre os integrantes do grupo. Agora, resta saber se esta gaita também era usado durante o quicumbi ou apenas para tirar reses e para os bailes.
Retirei o trecho que segue do trabalho de Luciana, sendo este referente ao conjunto musical Os Botinhas. Propositalmente, “começo” este recorte exatamente na parte onde a autora discorre sobre o salão e sua importância social, o que também, suponho, seja um importante signo das manifestações e culturas tradicionais praticadas no Rio Grande do Sul, devido a necessidade temporal de um local fechado para estas práticas.
Aproveitem!

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(...)   Nesse sentido o salão, antecipa a associação quilombola, como cristalização de uma sociabilidade que configura a identidade étnica, como totalizável em uma expressão político-cultural. Suportado por essa sociabilidade festiva, o salão tem grande influência e importância na reconstrução e fortalecimento desses laços. Foi construído sob a intenção de que a comunidade pudesse realizar as festas “deles”. As fronteiras de um “nós” versus “eles” já se constituía sobre a dimensão festiva.

 Embora o conjunto musical “Os Botinhas” fosse convidado para animar também as festas dos granjeiros, mas as fronteiras entre o espaço de sociabilidade interno e externo à comunidade ficaram instituídas até pelo menos a década de 50. Conta-se na comunidade que os negros não podiam entrar em festas de brancos, e cronometram a década de 1950 como data ainda recente, vívida na memória coletiva. Essa proibição os motivou para a construção do Salão, pois tiveram um espaço para dançar, se divertir e poder jogar aos finais de semana. Segundo Nilson, atual responsável pelo Salão, assim como os negros sabiam o seu lugar, os brancos também e não freqüentavam as festas que eram realizadas no Salão Princesa Isabel. Mas com o passar do tempo e com as relações de empregados e patrões, que foram se criando com os granjeiros, fazendeiros e estancieiros essa relação foi se quebrando.

As pessoas dos Botinhas começaram a ser contratadas informalmente para trabalhar em granjas e fazendas, sem carteira assinada. Nas festas realizadas no salão Princesa Isabel os granjeiros mandavam funcionários não negros para observar o comportamento de seus funcionários quilombolas. E Mesmo estes funcionários freqüentando o local, segundo Nilson dono do salão, eles sempre souberam respeitar.

       A comunidade é muito festeira e é muito conhecida pelas boas festas que fazia. Numa visita que realizei em junho de 2009 na casa de uma das viúvas do conjunto musical “Os Botinhas”, foi possível analisar primeiramente a tristeza pela falta do principal músico e cantor. A viúva é chamada por todos de tia Jota e tem uma irmã gêmea. Tia Jota casou com o Bota que foi o precursor do conjunto musical o mesmo também tinha um irmão gêmeo que casou com a irmã da tia Jota, a Preta. O mais curioso de tudo é que são todos primos, nascidos e criados no Capão da Porteira e descentes da escrava Pelônia.
Na casa da tia Jota, a sala é repleta de lembranças das décadas de fama do conjunto musical, fotos dos ternos de reis, das apresentações de quicumbi, das coreografias com facas e dos trajes muito bem alinhados e sinos na barra das calças. Eles aprenderam a dançar em uma festa que foram no Bacopari[1], e de tempos em tempos o grupo do Bacopari participava de bailes nos Botinhas e os dois grupos dançavam.

Com freqüência o assunto em campo eram as festas. Num desses dias, enquanto Seleza fazia a janta, ficamos conversando até tarde sobre os bailes da Dona Joana. Dona Joana é avó materna de “criação” da Tia Chica. Joana gostava muito de fazer bailes e tinha uma casa para morar e outra só pra fazer bailes. A casa de bailes era de chão batido e quem ajudou a construir foram às mulheres da comunidade. Como a casa era de chão batido levantava muita poeira quando o baile começava, mas isso não era empecilho para as pessoas permanecerem dançando ao som do gaiteiro Velúcio, pois o chão era borrifado com água, e o baile seguia.

Já o Terno de reis, Chica não só acompanhava a todas as cerimônias, com seu ex marido que era mestre, como também trabalhava nos preparativos da alimentação "...eu fazia sopa de osso e de guisado". Chica relata que os brancos também participavam das cerimônias religiosas no Cantão, porém os Botinhas não, pois eles tinha o seu próprio grupo de Terno de Reis. Só havia interação entre os ternos quando havia necessidade de ajuda para preparar as refeições que eram distribuídas.

Sobre a esta atuação entre os Ternos de Reis Tia Chica comenta:

 "a irmã da minha avó casou com Estevão que era botinha e foi morar lá, mas quase nunca a gente visitava ela e ela também foi deixando de visitar a gente. O meu marido ficou doente e foi deixando de lado o Terno, aí quando ele morreu acabou tudo mesmo. E a vó eu só fui ver quando ela morreu."  (FRANCISCA – Cantão das Lombas)

     O terno de reis tem grande semelhança com o que era realizado na mesma época de 60 no quilombo da Anastácia[2]. A única diferença é que ao invés de uma dupla cantando e tocando instrumentos com melodias católicas, era o conjunto musical dos Botinhas constituído por aproximadamente 15 pessoas é que comandava as celebrações. E ao término de cada cantoria pelas casas que passavam eram oferecidos café, bolo, cucas, lingüiça e diversas guloseimas. Após passarem em todas as casas da comunidade quilombola a festa começava no Salão Princesa Isabel.

Tia Jota se emociona ao relembrar dos tempos em que os Botinhas cantavam e dançavam. Tempo esse que se foi, mas as lembranças ficaram e as amizades não foram esquecidas.  Neste dia ela fez questão de chamar as filhas e netos para ouvirem o que ela tinha pra contar e fazia questão de dizer que “os verdadeiros Botas” são a família dela. Pois o Beco onde moram leva o nome de Botinhas por conta do conjunto musical que foi criado pelo seu esposo. E aos poucos a casa da Tia Jota foi enchendo de gente, que faltaram até cadeiras. A grande maioria eram os adolescentes, com sede de saber sobre a história do conjunto que originou o beco onde moram.

Figura 4 -  Conjunto “Os Botinhas”  terno de reis. Fonte: (Acervo da associação quilombola Peixoto dos Botinhas)

Só pelo fato do resgate histórico, oral e fotográfico das origens do conjunto musical e o interesse dos mais novos, a todo momento as irmãs Jota e Preta colocavam as crianças no comprometimento de levar a diante as origens dos Botinhas e quem sabe criar um novo grupo. Ao mesmo tempo que se queixavam que os jovens não querem mais saber de nada. Tia Jota dizia: “mas seria um sonho ver o conjunto constituído novamente”.
 
         Os vínculos que foram estreitados pelas redes de parentesco encontram nos bailes um espaço de exercício de sociabilidade, com representações coletivas que atribuem significados e reconhecimento. E faz com que a reconstrução do passado, ou seja, o rememorar os bailes, as perdas, os conflitos, evoca um leque de possibilidades de interpretações dessas marcas. Dessa forma se faz necessário destacar o papel que esses eventos festivos consagram na construção de alteridade desse espaço:

...são as grandes festividades na comunidade que inscrevem a memória coletiva nos corpos. No ritual festivo, tanto nos profanos como nos religiosos, a cadência ritmada dos corpos compassa a liberdade de se possuir um território para percorrer, ocupar, dançar (...) É por essa história incorporada através dos rituais festivos que a unidade da comunidade se faz território. (GOMES DOS ANJOS & ALMEIDA, 2002/2003, p.56)

        Na realização de eventos, como os bailes, eles revezavam com a comunidade Cantão das Lombas, que foi a pioneira em realização de festas. Que são lembradas até hoje como as festas da “dona Joana”. Esse revezamento se dava da seguinte forma: Peixoto dos Botinhas quando realizava as festas no salão, providenciava o conjunto musical, bebida e alimentação (essa alimentação variava, as vezes serviam um grande café com leite, bolos, pães e cucas ou churrasco, galeto, sopão, mocotó) e a comunidade do Cantão era convidada, então não precisavam pagar nada nem contribuir. E dessa forma quando as festas eram realizadas no Cantão das Lombas era recíproco, ou seja, os convidados eram convidados e não precisavam contribuir com bebidas e alimentos, mas o conjunto musical “Os Botinhas” sempre tocava uma ou duas músicas para retribuir o convite. Assim essas festividades trazem elementos de um cotidiano passado que fez parte de um território, fortaleceu os laços de parentesco e está sendo resgatado novamente. (...)


[1] A localidade do Bacopari faz parte do território quilombola de Limoeiro em Palmares do Sul.
[2] O quilombo da Anastácia foi o primeiro a se auto declarar enquanto comunidade remanescente de quilombo em Viamão/RS, está localizado no bairro Estância Grande.

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por Lucas Luz para FÉsta Produções & Pesquisas em Culturas Populares e Tradicionais.
Foram respeitados a grafia e os temros originais do autor.
 

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