Excelente texto, não por menos encontrado em uma data tão complexa quanto este dia de hoje, 20 de Setembro. Depois de anos vivênciando e acompanhando os maçambiques, eis que este é o mais esclarecedor de todos os registros com os quais tive contato e que também já me propus em escrever.
Uma visão tão coesa, detalhista e íntima como essa só poderia ser escrita por alguém do próprio grupo, o que neste texto acontece. Escrito por Francisca Dias, presidente da Associação Religiosa e Cultural Maçambique de Osório e filha da Rainha Ginga Severina Dias, o texto é uma ótima recordação sobre as origens do Maçambique e as trajetórias de suas rainhas gingas. Encontrado em Cantadores do Litoral.
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A
RAINHA GINGA - MEMÓRIA E IDENTIDADE MAÇAMBIQUEIRA
Artigo escrito para publicação no Livro "Raízes de Capão da Canoa".
Artigo escrito para publicação no Livro "Raízes de Capão da Canoa".
Francisca
Dias
Coordenadora do Grupo Religioso e Cultural
Maçambique de Osório
Coordenadora do Grupo Religioso e Cultural
Maçambique de Osório
O Maçambique
é o maior elo de ligação fundamental com a vida
da comunidade negra, situada nos municípios de Osório,
Maquiné, Santo Antônio da Patrulha, Palmares do Sul, Terra
de Areia e adjacências, no Litoral Norte, no Estado do Rio Grande
do Sul. Com o ritual religioso e afro-católico, quando são
expressas as devoções aos santos católicos, a comunidade
negra de Morro Alto participa das festas que exaltam, agradecem e celebram
a fé em torno de Nossa Senhora do Rosário e de São
Benedito.
Dentre
as personagens desta cerimônia religiosa, sobretudo, da dimensão
que incorpora as heranças dos escravos africanos e brasileiros,
a principal é a Rainha Ginga. Por meio das ações,
dos pensamentos e da memória advinda dos ancestrais africanos,
as rainhas gingas perpetuaram a cultura, os valores e a identidade da
comunidade negra de Osório. Os reis e as rainhas africanos, muitas
vezes, eram também sacerdotes que não somente foram reverenciados
como intermediários entre os homens, mas como deuses eles mesmos.
Os reis representam a renovação dos valores comunitários
da história de um povo, desde os tempos imemoriais e históricos.
Nzinga
Mbandi Ngola, rainha de Matamba e Angola nos séculos XVI-XVII
(1587-1663), foi uma das mulheres e heroínas africanas cuja memória
tem desafiado o processo diluidor da amnésia, dando origem a
um imaginário cultural na diáspora tal como no folclore
brasileiro com o nome de Ginga. A rainha Nzinga Mbandi, filha do rei
de Angola, formou um pequeno exército, a fim de combater e conquistar
o reino de seu irmão Ngola Mbandi, que havia matado seu filho
por interesse de terras e sucessão. A rainha conseguiu reunir
várias tribos e fez acordo com os portugueses, em troca do seu
apoio, convertendo-se, estrategicamente, à religião católica,
quando recebeu o nome de Ana de Souza. Mais tarde, renegou a fé
cristã, embora tenha contribuindo para a difusão e a afirmação
do catolicismo na África. Não obstante, expulsou aos portugueses
invasores de suas terras.
A
história desta soberana negra chegou ao Brasil, sobretudo por
meio das embaixadas nas Congadas, dos cortejos e dos bailados do Maçambique.
Em Osório, as diversas rainhas Gingas com o pálio real
de cor azul; com as sucessivas coroas que acrescentavam aos seus corpos
físicos uma capacidade transcendental de unificar uma comunidade
étnico-cultural afro-brasileira para além das suas dimensões
geográfico-territorial. Em verdade, fica enfatizado o caráter
político, uma vez que elas agregam um valor emocional cuja unidade
é a pátria, as tribos e as nações africanas.
A coroa que elas portam está profundamente associada à
identidade de grupo da comunidade negra, consolidada pela rede de parentesco
consangüíneo e ritual.
A primeira Rainha Ginga, da qual se obteve algum registro, foi dona
Maria Lima, que era chamada, popularmente, de "dona Maria Gorda".
Ela era parteira, tinha uma personalidade forte e teria reinado entre
1922 e 1935. Sua sucessora foi Maria Vergilina da qual nada foi referido
pelos mais velhos, além do nome, e que teria reinado entre 1935
e 1950.
A
rainha seguinte, por sucessão, foi Maria Tereza Joaquina de Oliveira
que reinou , entre 1950 e 1978. De acordo com muitos dos antigos maçambiqueiros,
Maria Tereza era uma figura altiva, imponente e carismática.
O maior orgulho da rainha Ginga Maria Teresa Joaquina de Oliveira era
o fato de ter sido coroada pelo cardeal Dom Vicente Scherer. Ela afirmou
o seguinte: "O Dom Vicente Scherer me disse, 'tu é quem
manda, tu que governa e eles não podem fazer nada sem tu. Tu
és quem ficou no lugar da africana. Eles botaram a guerra com
a africana porque a festa da africana era mais bonita do que as dos
brancos. Os brancos faziam a festa, negro não fazia. Mas a africana
tinha Nossa Senhora do Rosário em casa [...] então a rainha
guerreou e venceu a guerra como tu (Maria Tereza) venceste esta coroa
hoje'". Ao final das sábias palavras, o nobre arcebispo
colocou a coroa na cabeça de Maria Tereza. Apesar da idade avançada,
demonstrava muita lucidez e grande capacidade de julgamento. No passado,
no âmbito da comunidade negra de Morro Alto, as rainhas tinham
o poder delegado pelos integrantes de resolver todos os conflitos, podendo
até mesmo ordenar a prisão daquele que tivesse sido responsabilizado
por alguma transgressão. Ela indicava os festeiros para a festa
de Nossa Senhora do Rosário. Esta rainha veio a falecer com 111
anos.
Tomásia
Sérgio de Oliveira, natural de Maquiné, herdou o cargo
de sua mãe, Maria Tereza. Esta rainha tinha um temperamento muito
diferente de sua antecessora, uma vez que era tímida e simples.
No entanto, ao desfilar com o manto azul e sua coroa prateada, desfilava
silenciosa e majestosa, ao lado do rei, e sempre acompanhada de sua
pajem. Ela reinou entre 1978 e 1992. Quando a rainha Ginga Maria Tereza
faleceu, em 1992, suas filhas abriram mão do cargo, o qual caberia
a qualquer uma delas na linha sucessória. Dona Maria de Oliveira,
uma das suas filhas, em 1986, já havia declarado o seguinte:
"Isso é coisa dos antigos, dos mais velhos. Mesmo assim,
eu não quero passar o trabalho que a mãe passa".
Atualmente,
a rainha Ginga é dona Severina Maria Francisca Dias, também
chamada pelos parentes maçambiqueiros de "Sibirina".
Severina Dias foi coroada, na Catedral de Nossa Senhora da Conceição,
em 1992, pelo padre Aloysio, cujo reinado mantém até hoje.
Ela nasceu em Morro Alto. Com 20 anos, Dona Severina Dias trabalhou
como cozinheira, por dois anos, na antiga Rodoviária de Osório,
sob a administração do Sr. Alexandre Renda, pai do atual
prefeito de Osório Sr. Eduardo Renda. Depois, mudou-se para Osório,
em 1970, trabalhou em muitos bares e prestou serviços domésticos
a muitas famílias. É funcionária pública
aposentada, pela antiga CRT (Companhia Riograndense de Telecomunicações).
Com
a condição de ter sido pajem das duas rainhas anteriores,
Maria Teresa, desde 1971; e Tomázia, de 1978 até 1992.
No tempo de Tomázia, de quem era prima, ela foi muito ativa,
uma vez que cuidava da recepção aos convidados, além
de representar a rainha Ginga em muitos "pagamentos de promessas".
A rainha Ginga dona Severina Dias possui um amplo saber das rezas, dos
cantos do Maçambique. Por meio da intercessão de Nossa
Senhora do Rosário, ela acolhe os pedidos por milagres e curas;
acolhe os agradecimentos e distribui as bênçãos
aos fiéis católicos do Maçambique.
Por muitos anos, Severina realizou muitos partos domésticos, tanto em Morro Alto como em Osório. Em tais ocasiões, portava uma estatueta que representava a imagem da Nossa Senhora do Bom Parto. Aliás, quadros com imagens sacras é o que não faltam em sua residência, tais com de Santa Luzia, Santa Catarina, São Jorge e Santa Bárbara, atestando o seu grande fervor católico. Domina um amplo conhecimento acerca de ervas medicinais, por isso, muitas pessoas recorrem a ela, valendo-se da sua sabedoria. Ela é, indubitavelmente, a detentora da memória do sagrado e de grande parte da história da comunidade negra do Morro Alto e dos ofícios religiosos do Maçambique.
Por muitos anos, Severina realizou muitos partos domésticos, tanto em Morro Alto como em Osório. Em tais ocasiões, portava uma estatueta que representava a imagem da Nossa Senhora do Bom Parto. Aliás, quadros com imagens sacras é o que não faltam em sua residência, tais com de Santa Luzia, Santa Catarina, São Jorge e Santa Bárbara, atestando o seu grande fervor católico. Domina um amplo conhecimento acerca de ervas medicinais, por isso, muitas pessoas recorrem a ela, valendo-se da sua sabedoria. Ela é, indubitavelmente, a detentora da memória do sagrado e de grande parte da história da comunidade negra do Morro Alto e dos ofícios religiosos do Maçambique.
Certamente
na passagem do tempo, na reafirmação e na construção
da memória, ocorrem continuidades, rupturas, descontinuidades
e reinvenções. Para finalizar, vejamos como ela reproduz
a narrativa que consolida o mito de fundação da festa
do Maçambique, e que vem sendo repassada de rainha Ginga para
rainha Ginga:
"Eu
sei que a falecida Maria Teresa contava assim: que isso aí, os
brancos, eram o senhor. O senhor...os negros não festejavam,
os negros era só pra trabalhar e os brancos tinham a festa...foram
à festa e tinha uma menina, decerto era filha de algum abençoado.!
Diz que foi e disse assim: - 'Meu pai, por que os brancos se divertem
e os negros não? Os coitadinhos puxando carreta de cana, carreta
de lenha, tocado a guiada, tocado a prego, eles não se divertem?
E...:- 'Não, minha filha; é assim: os negros é
prá trabalhar.' E ela: - 'Não, pode ser assim!' [...]
Aí ela foi e disse assim: -'Vou fazer uma festa, meu pai.' Ele:
- 'Quem sabe? Será que vai dar certo?' - 'Vou experimentar! Aí
fez, a primeira festa, né? A primeira festa, não foi logo
avante, não deu. Ela logo em seguida disse pro pai: - 'Eu vou
tornar a fazer outra. Os nossos negros todos, vai se divertir ou não
vai se divertir?' Adonde ela fez o maçambique. Decerto o outro
santo...decerto não aceitou né, aí, ela puxou a
Nossa senhora do Rosário. E continuou o maçambique."
Ela contou, ainda, de que a primeira festa teria dado certo , uma vez que havia um negro no palanque. Este estava condenado à morte, porém Nossa Senhora do Rosário mandou um enviado, a fim de convidá-lo para ser festeiro da Santa. Nesse meio tempo, o carrasco ironizava e ria do escravo, quando alguém indicou a chegada de um mensageiro. O enviado questionou das razões para matar uma pessoa e mandou parar. A seguir, chamou por aquele que estava condenado à morte. Solto o escravo, foi pedido a ele que lesse a carta, ao que ele retrucou, dizendo que não sabia ler. O homem pediu licença para ler a carta. E, assim, continuou a narração a rainha Ginga Severina:
"Aí
diz que ele foi e disse: - 'Pode ler, pode ler, pra todo mundo ver.'
Decerto pra ler alto, né? Aí ele leu, diz - 'Olha, Nossa
Senhora do Rosário tá te convidando pra tu ser festeiro
dela e tu fazer a festa dela.' Aí soltou o outro e deu liberdade
pra ele na hora, ele deu a liberdade. Daquele dia em diante ele não
ia trabalhar mais pra eles, né, ele ia trabalhar só pra
fazer a festa da Nossa Senhora e queria uma festa boa! Então
adonde que os negros tiveram festa foi devido à Nossa Senhora
do Rosário."
É por estas razões expostas acima e devido às múltiplas
memórias acumuladas, é que as rainhas gingas são
o cerne da vida do maçambique. Devendo, por isso, serem admiradas
e respeitadas.
BIBLIOGRAFIA
BRANCO,
Estelita de Aguiar et. Al. Maçambique - Coroação
de reis em Osório, Comissão Gaúcha do Folclore,
Porto Alegre, RS, 1999;
BARCELLOS, Daisy et. Al. Comunidade Negra de Morro Alto - Historicidade, Identidade e Territorialidade, Ufrgs Editora, Porto Alegre, RS, 2004;
GUANDONIN, Manoil Vitório. Maçambique em Osório, Palestrina, Capão da Canoa, RS, Janeiro, 1986;
MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória., Mazza Edições/ Perspectiva, Belo Horizonte, MG, 1997;
MOURA, Maria da Glória da Veiga. Ritmo e Ancestralidade na Força dos Tambores Negros - O currículo invisível da festa, PPG em Educação, Usp, São Paulo, SP, 1997;
SERRANO
SILVA, Marina Raymundo da. Viajando Pelo Município, Associação dos Estudos Culturais, AEC, Osório, RS, 1999;
SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil Escravista - História da Festa de Coroação de Rei Congo, Humanitas, Ufmg, Belo Horizonte, MG, 2002;
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SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil Escravista - História da Festa de Coroação de Rei Congo, Humanitas, Ufmg, Belo Horizonte, MG, 2002;
Maçambiques
- Todos os Diretos Reservados - Francisca Dias
por Lucas Luz para FÉsta Produções & Pesquisas em Culturas Populares e Tradicionais.
Foram respeitados a grafia e os temros originais do texto.
Foram respeitados a grafia e os temros originais do texto.
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