terça-feira, 20 de setembro de 2011

A Rainha Ginga - Memória e identidade maçambiqueira

Excelente texto, não por menos encontrado em uma data tão complexa quanto este dia de hoje, 20 de Setembro. Depois de anos vivênciando e acompanhando os maçambiques, eis que este é o mais esclarecedor de todos os registros com os quais tive contato e que também já me propus em escrever.

Uma visão tão coesa, detalhista e íntima como essa só poderia ser escrita por alguém do próprio grupo, o que neste texto acontece. Escrito por Francisca Dias, presidente da Associação Religiosa e Cultural Maçambique de Osório e filha da Rainha Ginga Severina Dias, o texto é uma ótima recordação sobre as origens do Maçambique e as trajetórias de suas rainhas gingas. Encontrado em Cantadores do Litoral.

***

A RAINHA GINGA - MEMÓRIA E IDENTIDADE MAÇAMBIQUEIRA
Artigo escrito para publicação no Livro "Raízes de Capão da Canoa".

Francisca Dias
Coordenadora do Grupo Religioso e Cultural
Maçambique de Osório

O Maçambique é o maior elo de ligação fundamental com a vida da comunidade negra, situada nos municípios de Osório, Maquiné, Santo Antônio da Patrulha, Palmares do Sul, Terra de Areia e adjacências, no Litoral Norte, no Estado do Rio Grande do Sul. Com o ritual religioso e afro-católico, quando são expressas as devoções aos santos católicos, a comunidade negra de Morro Alto participa das festas que exaltam, agradecem e celebram a fé em torno de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito.

Dentre as personagens desta cerimônia religiosa, sobretudo, da dimensão que incorpora as heranças dos escravos africanos e brasileiros, a principal é a Rainha Ginga. Por meio das ações, dos pensamentos e da memória advinda dos ancestrais africanos, as rainhas gingas perpetuaram a cultura, os valores e a identidade da comunidade negra de Osório. Os reis e as rainhas africanos, muitas vezes, eram também sacerdotes que não somente foram reverenciados como intermediários entre os homens, mas como deuses eles mesmos. Os reis representam a renovação dos valores comunitários da história de um povo, desde os tempos imemoriais e históricos.

Nzinga Mbandi Ngola, rainha de Matamba e Angola nos séculos XVI-XVII (1587-1663), foi uma das mulheres e heroínas africanas cuja memória tem desafiado o processo diluidor da amnésia, dando origem a um imaginário cultural na diáspora tal como no folclore brasileiro com o nome de Ginga. A rainha Nzinga Mbandi, filha do rei de Angola, formou um pequeno exército, a fim de combater e conquistar o reino de seu irmão Ngola Mbandi, que havia matado seu filho por interesse de terras e sucessão. A rainha conseguiu reunir várias tribos e fez acordo com os portugueses, em troca do seu apoio, convertendo-se, estrategicamente, à religião católica, quando recebeu o nome de Ana de Souza. Mais tarde, renegou a fé cristã, embora tenha contribuindo para a difusão e a afirmação do catolicismo na África. Não obstante, expulsou aos portugueses invasores de suas terras.

A história desta soberana negra chegou ao Brasil, sobretudo por meio das embaixadas nas Congadas, dos cortejos e dos bailados do Maçambique. Em Osório, as diversas rainhas Gingas com o pálio real de cor azul; com as sucessivas coroas que acrescentavam aos seus corpos físicos uma capacidade transcendental de unificar uma comunidade étnico-cultural afro-brasileira para além das suas dimensões geográfico-territorial. Em verdade, fica enfatizado o caráter político, uma vez que elas agregam um valor emocional cuja unidade é a pátria, as tribos e as nações africanas. A coroa que elas portam está profundamente associada à identidade de grupo da comunidade negra, consolidada pela rede de parentesco consangüíneo e ritual.

A primeira Rainha Ginga, da qual se obteve algum registro, foi dona Maria Lima, que era chamada, popularmente, de "dona Maria Gorda". Ela era parteira, tinha uma personalidade forte e teria reinado entre 1922 e 1935. Sua sucessora foi Maria Vergilina da qual nada foi referido pelos mais velhos, além do nome, e que teria reinado entre 1935 e 1950.

A rainha seguinte, por sucessão, foi Maria Tereza Joaquina de Oliveira que reinou , entre 1950 e 1978. De acordo com muitos dos antigos maçambiqueiros, Maria Tereza era uma figura altiva, imponente e carismática. O maior orgulho da rainha Ginga Maria Teresa Joaquina de Oliveira era o fato de ter sido coroada pelo cardeal Dom Vicente Scherer. Ela afirmou o seguinte: "O Dom Vicente Scherer me disse, 'tu é quem manda, tu que governa e eles não podem fazer nada sem tu. Tu és quem ficou no lugar da africana. Eles botaram a guerra com a africana porque a festa da africana era mais bonita do que as dos brancos. Os brancos faziam a festa, negro não fazia. Mas a africana tinha Nossa Senhora do Rosário em casa [...] então a rainha guerreou e venceu a guerra como tu (Maria Tereza) venceste esta coroa hoje'". Ao final das sábias palavras, o nobre arcebispo colocou a coroa na cabeça de Maria Tereza. Apesar da idade avançada, demonstrava muita lucidez e grande capacidade de julgamento. No passado, no âmbito da comunidade negra de Morro Alto, as rainhas tinham o poder delegado pelos integrantes de resolver todos os conflitos, podendo até mesmo ordenar a prisão daquele que tivesse sido responsabilizado por alguma transgressão. Ela indicava os festeiros para a festa de Nossa Senhora do Rosário. Esta rainha veio a falecer com 111 anos.

Tomásia Sérgio de Oliveira, natural de Maquiné, herdou o cargo de sua mãe, Maria Tereza. Esta rainha tinha um temperamento muito diferente de sua antecessora, uma vez que era tímida e simples. No entanto, ao desfilar com o manto azul e sua coroa prateada, desfilava silenciosa e majestosa, ao lado do rei, e sempre acompanhada de sua pajem. Ela reinou entre 1978 e 1992. Quando a rainha Ginga Maria Tereza faleceu, em 1992, suas filhas abriram mão do cargo, o qual caberia a qualquer uma delas na linha sucessória. Dona Maria de Oliveira, uma das suas filhas, em 1986, já havia declarado o seguinte: "Isso é coisa dos antigos, dos mais velhos. Mesmo assim, eu não quero passar o trabalho que a mãe passa".

Atualmente, a rainha Ginga é dona Severina Maria Francisca Dias, também chamada pelos parentes maçambiqueiros de "Sibirina". Severina Dias foi coroada, na Catedral de Nossa Senhora da Conceição, em 1992, pelo padre Aloysio, cujo reinado mantém até hoje. Ela nasceu em Morro Alto. Com 20 anos, Dona Severina Dias trabalhou como cozinheira, por dois anos, na antiga Rodoviária de Osório, sob a administração do Sr. Alexandre Renda, pai do atual prefeito de Osório Sr. Eduardo Renda. Depois, mudou-se para Osório, em 1970, trabalhou em muitos bares e prestou serviços domésticos a muitas famílias. É funcionária pública aposentada, pela antiga CRT (Companhia Riograndense de Telecomunicações).

Com a condição de ter sido pajem das duas rainhas anteriores, Maria Teresa, desde 1971; e Tomázia, de 1978 até 1992. No tempo de Tomázia, de quem era prima, ela foi muito ativa, uma vez que cuidava da recepção aos convidados, além de representar a rainha Ginga em muitos "pagamentos de promessas". A rainha Ginga dona Severina Dias possui um amplo saber das rezas, dos cantos do Maçambique. Por meio da intercessão de Nossa Senhora do Rosário, ela acolhe os pedidos por milagres e curas; acolhe os agradecimentos e distribui as bênçãos aos fiéis católicos do Maçambique.

Por muitos anos, Severina realizou muitos partos domésticos, tanto em Morro Alto como em Osório. Em tais ocasiões, portava uma estatueta que representava a imagem da Nossa Senhora do Bom Parto. Aliás, quadros com imagens sacras é o que não faltam em sua residência, tais com de Santa Luzia, Santa Catarina, São Jorge e Santa Bárbara, atestando o seu grande fervor católico. Domina um amplo conhecimento acerca de ervas medicinais, por isso, muitas pessoas recorrem a ela, valendo-se da sua sabedoria. Ela é, indubitavelmente, a detentora da memória do sagrado e de grande parte da história da comunidade negra do Morro Alto e dos ofícios religiosos do Maçambique.

Certamente na passagem do tempo, na reafirmação e na construção da memória, ocorrem continuidades, rupturas, descontinuidades e reinvenções. Para finalizar, vejamos como ela reproduz a narrativa que consolida o mito de fundação da festa do Maçambique, e que vem sendo repassada de rainha Ginga para rainha Ginga:

"Eu sei que a falecida Maria Teresa contava assim: que isso aí, os brancos, eram o senhor. O senhor...os negros não festejavam, os negros era só pra trabalhar e os brancos tinham a festa...foram à festa e tinha uma menina, decerto era filha de algum abençoado.! Diz que foi e disse assim: - 'Meu pai, por que os brancos se divertem e os negros não? Os coitadinhos puxando carreta de cana, carreta de lenha, tocado a guiada, tocado a prego, eles não se divertem? E...:- 'Não, minha filha; é assim: os negros é prá trabalhar.' E ela: - 'Não, pode ser assim!' [...] Aí ela foi e disse assim: -'Vou fazer uma festa, meu pai.' Ele: - 'Quem sabe? Será que vai dar certo?' - 'Vou experimentar! Aí fez, a primeira festa, né? A primeira festa, não foi logo avante, não deu. Ela logo em seguida disse pro pai: - 'Eu vou tornar a fazer outra. Os nossos negros todos, vai se divertir ou não vai se divertir?' Adonde ela fez o maçambique. Decerto o outro santo...decerto não aceitou né, aí, ela puxou a Nossa senhora do Rosário. E continuou o maçambique."

Ela contou, ainda, de que a primeira festa teria dado certo , uma vez que havia um negro no palanque. Este estava condenado à morte, porém Nossa Senhora do Rosário mandou um enviado, a fim de convidá-lo para ser festeiro da Santa. Nesse meio tempo, o carrasco ironizava e ria do escravo, quando alguém indicou a chegada de um mensageiro. O enviado questionou das razões para matar uma pessoa e mandou parar. A seguir, chamou por aquele que estava condenado à morte. Solto o escravo, foi pedido a ele que lesse a carta, ao que ele retrucou, dizendo que não sabia ler. O homem pediu licença para ler a carta. E, assim, continuou a narração a rainha Ginga Severina:

"Aí diz que ele foi e disse: - 'Pode ler, pode ler, pra todo mundo ver.' Decerto pra ler alto, né? Aí ele leu, diz - 'Olha, Nossa Senhora do Rosário tá te convidando pra tu ser festeiro dela e tu fazer a festa dela.' Aí soltou o outro e deu liberdade pra ele na hora, ele deu a liberdade. Daquele dia em diante ele não ia trabalhar mais pra eles, né, ele ia trabalhar só pra fazer a festa da Nossa Senhora e queria uma festa boa! Então adonde que os negros tiveram festa foi devido à Nossa Senhora do Rosário."

É por estas razões expostas acima e devido às múltiplas memórias acumuladas, é que as rainhas gingas são o cerne da vida do maçambique. Devendo, por isso, serem admiradas e respeitadas.

BIBLIOGRAFIA

BRANCO, Estelita de Aguiar et. Al. Maçambique - Coroação de reis em Osório, Comissão Gaúcha do Folclore, Porto Alegre, RS, 1999;
BARCELLOS, Daisy et. Al. Comunidade Negra de Morro Alto - Historicidade, Identidade e Territorialidade, Ufrgs Editora, Porto Alegre, RS, 2004;
GUANDONIN, Manoil Vitório. Maçambique em Osório, Palestrina, Capão da Canoa, RS, Janeiro, 1986;
MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória., Mazza Edições/ Perspectiva, Belo Horizonte, MG, 1997;
MOURA, Maria da Glória da Veiga. Ritmo e Ancestralidade na Força dos Tambores Negros - O currículo invisível da festa, PPG em Educação, Usp, São Paulo, SP, 1997;
SERRANO
SILVA, Marina Raymundo da. Viajando Pelo Município, Associação dos Estudos Culturais, AEC, Osório, RS, 1999;
SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil Escravista - História da Festa de Coroação de Rei Congo, Humanitas, Ufmg, Belo Horizonte, MG, 2002;


Maçambiques - Todos os Diretos Reservados - Francisca Dias


por Lucas Luz para FÉsta Produções & Pesquisas em Culturas Populares e Tradicionais.
Foram respeitados a grafia e os temros originais do texto. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário